segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Calvary. Cru e ambicioso, mas errante


O carisma transbordante de Brendan Gleeson e do seu mau feitio irlandês conquistou-me cedo e nunca me chegou a desiludir desde aí. Para mim, ele consta daquele punhado de nomes cujos filmes já valem sempre por si. Apesar das muitas horas a vê-lo, confesso que há três anos ainda me rendi mais profundamente: The Guard, apesar de relativamente fora de radar, foi um dos filmes sensacionais de 2011, uma cáustica e irresistível alegoria negra que o emprestou absolutamente à sua praia. Com uma avenida escancarada para brilhar, Gleeson, como é bom de ver, não vacilou, assinando um filme de culto. Foi, por isso, natural que, no momento em que se anunciou nova colaboração entre ele e o realizador-argumentista John Michael McDonagh, o meu reflexo tenha sido instintivo. Durante os últimos três anos, Calvary foi um dos meus filmes mais honestamente aguardados.

Como na grande maioria dos casos em que a bitola ficou muito alta, a sombra, no entanto, exerceu uma influência nociva no subproduto. Calvary conta a história de um padre de aldeia genuinamente bom, que será forçado a enfrentar o mau fundo de quase todos à sua volta, e a lutar contra circunstâncias perversas e irracionais, que o perseguem, ainda que nada tenham a ver com ele. É, sob uma análise justa, um filme com vários predicados. Não nos convence sempre, porque ora perde-se, mas completa-se de uma forma fiável e coesa. Todo o filme se rege sob o signo da ameaça de morte ao seu protagonista, anunciada de chofre, e acompanha a candura de espírito com que ele lida com o assunto, mantendo-se imperturbável à sua fé e expiando, até, as suas próprias feridas familiares. Temos, todavia, de esperar até ao final para reconhecer o alcance do argumento e o bom gosto de algumas opções.

O problema de Calvary é ser demasiado errante. Perder, como já disse, a noção do tempo e do que estava a fazer, com nuances redundantes, que foram travando o filme, momentos contemplativos e diálogos demasiado absorvidos em si mesmos. Faltou-lhe um desígnio orientador mais claro, cadência e chispa para levar a ideia a outros patamares, ainda que não tenha deixado de ser um filme ambicioso, no sentido em que consegue ser particularmente desamorável para o espectador (com uma vénia ao último terço) e agarra um tema fracturante - a pedofilia na igreja católica - para ser cru, sem ser bacoco ou moralista. Como, de resto, seria expectável, em virtude do que já mostrara, McDonagh voltou a escrever um guião com um potencial evidente. Pena que desta vez não o tenha conseguido concretizar.

Num elenco interessante, destaco a beleza cansada de Kelly Reilly, que não me tinha convencido nem um pouco há dois anos, em The Flight. Na pele da filha que foi abandonada por um pai assombrado, a forma alheada como pontua as suas cenas, com uma tristeza quase natural, venceu e convenceu. O veteraníssimo Michael Emmet Walsh evidenciou-se, igualmente, como um daqueles secundários carinhosos e cheios de cor. De Brendan Gleeson nunca saberei dizer mal e este, de resto, também não era o caso. Mesmo após a sinopse, estava à espera de algo bem mais próximo do seu natural carácter intenso e irascível. O filme é, porém, propositadamente preso pelas rédeas. É, nas linhas bíblicas, uma profissão de fé, um teste de vocação. Gleeson tem um porte de leão, mas o objectivo do filme é, pelo contrário, que ele voluntariamente se contenha. Que cumpra a sua via sacra. A performance tem empatia, mas a verdade é que não conseguimos deixar de a estranhar. Tal como o resto do filme, estamos sempre à espera que aconteça mais qualquer coisa que a defina.

Calvary merece consideração, quanto mais não seja por ser um filme inteligente, o que é um elogio sempre maior do que parece. É provocante, agreste, tem um óptimo ambiente e tem Gleeson, o que será sempre um seguro. Peca por ser tão ocluso. No fundo, é um filme sobre equívocos que acaba, ele próprio, por equivocar-se no caminho.

6.5/10

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