terça-feira, 23 de setembro de 2014

O diário da nossa paixão


'This man showed again why he's my idol'
Drogba

Um extremo desce pela meia esquerda, na vertigem do contra-ataque, a cavalgar sobre um adversário desequilibrado, sob o prenúncio da ferida que está iminente. A adrenalina sente-se, mas não se consegue adivinhar o desenlace à nossa frente. Sabe-nos a sangue, mas tudo o que vemos é um avançado encoberto pelo mar de pernas adversárias, acotovelado na jaula que é a pequena área. É nesse exacto momento que sai o passe para o vazio. Aquele, porém, não é um vazio qualquer. O passe sai exactamente para a esquina da área e naquela esquina de área só não está ninguém de propósito. Só não está ninguém na exacta fracção de segundo que duram os teletransportes de Frank Lampard.

Um matador finaliza de qualquer quadrado do campo. Ele também já os marcou de todas as formas, mas há qualquer coisa de especial nos que reservam uns metros específicos para si próprios, nos que têm uma assinatura. Aquele será sempre o seu movimento. O que todos estudaram, previram e adivinharam ao longo dos anos, mas que muito poucos conseguiram conter. Um dia a Terra pode parar de girar, mas Lampard nunca deixará de entrar a correr na esquina da área, para marcar mais um golo. Num jogo de título, a perder em casa com o adversário mais directo, a 5 minutos do fim, Milner confessou na conferência de imprensa que, naquele contra-ataque, soube instintivamente onde pôr a bola. Que foi só cruzar como se, afinal, jogassem juntos há 30 anos. Ele, claro, estava lá. Como em todas as outras tardes da sua vida. Mesmo que, por uma vez, não quisesse ter estado.

Quando o vi ajeitar-se de azul celeste junto à linha lateral, à entrada do quarto-de-hora decisivo, confesso que o coração ficou pequenino. O futebol, como a vida, não devia ser assim. Lampard e o Chelsea sempre foram uma e a mesma coisa e, onde quer que estejam, unos serão até ao fim dos tempos. Nenhum dos dois merecia a crueldade deste desencontro. E desejei, por isso, que Pellegrini não jogasse sujo, que nos poupasse àquela facada à traição, mesmo sabendo que o futebol, como a vida, é muito mais perverso do que isso. Mesmo sabendo que ele tinha de o fazer.

Aquele golo, cravado pelo destino a ferro e fogo, é um momento icónico e ímpar, tragicamente deslumbrante. Foi uma implosão filosófica, cujas ondas de choque nos devem ter carcomido a todos de maneira diferente. Não sei quanto a vocês, mas eu, nem que tenha sido por um segundo, vi aquela carreira toda a passar à minha frente. E, nem que tenha sido por um segundo, pareceu-me ver outra coisa. Pareceu-me adquirido que quem lá estava era um tipo com 26 anos mal feitos, cabelo invariavelmente em desalinho e as ganas na cara de quem tem tudo para provar. Um promissor médio inglês no tempo em que de inglês não havia nada de promissor, um exemplo de líder antes de ser um líder pelo exemplo, numa armada azul pungente que, então, ainda nem conhecíamos. Pareceu-me ver o 8 estatual de outros tempos, às costas de um verdadeiro caça em transição ofensiva que foi, no fundo, a maior publicidade que a Fly Emirates nunca pôde pagar. Sempre que olhar para ele, sei que vou ver esse início de tudo, com o privilégio mal escondido de saber que o resto, como dizem, foi História.


Do caldeirão encantado desse Chelsea imortal não saiu apenas um dos médios europeus mais verdadeiramente excepcionais de uma geração. Fez-se um daqueles homens que marca a vida de um clube e a era de uma liga inteira. Talvez o Chelsea tenha ajudado a fazer Lampard. Mas num tempo cínico demais, em que tivemos de aprender a pôr um preço em tudo, engolidos pelo tsunami financeiro que teve o próprio clube como intérprete original… certo é que foi definitivamente Lampard a fazer o Chelsea. A dar-lhe a humanidade, a altivez, o carisma. O Chelsea podia ter acertado ou falhado, mas podia, sobretudo, nunca ter sido o que foi. Teve a felicidade de, mesmo sem muitas vezes o merecer, ter reunido, mais do que grandes jogadores, um punhado impagável de grandes homens. Não sonegando a guarda de honra, que todos sabemos quem são, nenhum pode remotamente querer disputar o lugar do maior de todos.

Nunca vou perceber porque é que Lampard aceitou o City e esse ónus ponho-o nele, por mais irracional que isso seja. O Chelsea é que disse, com todas as letras, que ele já não cabia. Que um tempo tinha chegado ao fim e que a hora era de partir. O Chelsea é que o deu por acabado… mas, mesmo assim, era a ele que exigíamos mais. Era a ele que exigíamos ser, não o herói que merecíamos, mas aquele do qual precisávamos. Num processo rocambolesco, Frankie acabou na mais detestável de todas as némesis. Na única com estômago suficiente para tentá-lo, envenená-lo, para aliciá-lo. Nunca vou conseguir aceitar aquele sim. Não sei se ele o fez por amargura, por achar que devia sair nos seus próprios termos ou por considerar que ainda era genuinamente útil, e não sei se se arrependeu. Não sei muitas coisas. O pouco que sei é que ele não merecia ouvir o que Mourinho lhe disse no fim do jogo. O pouco que sei é que, no Chelsea, quase tudo pode ser um dia posto em causa. Ele não.

Ao longo dos anos julgaremos muitas pessoas. Na maior parte das vezes não saberemos as suas razões, noutras tantas estaremos errados. Quase nunca poderemos ter a certeza. No Domingo, tivemos. Acho que já toda a gente teve um momento na vida em que só não chorou porque não pôde. Na twilight zone aberta por aquele volley eterno, Lampard descobriu que o único adversário que não podia bater era ele próprio. A maneira como baixou imediatamente a cabeça depois de marcar, envergonhado e impotente, fazendo-nos adivinhar as lágrimas que lhe marejavam os olhos, tornou-se, naquele instante, na mais pura de todas as suas provas de amor ao Chelsea. Diz-se que só damos o devido valor a uma pessoa quando a perdemos. Lampard conseguiu ser a bandeira maior de um clube, mesmo no dia em que, como adversário e no último encontro, lhes custou a vitória. Por uma tarde mais, foi ele a alma do Chelsea. Foi ele a razão porque olhámos para o clube e conseguimos ver para além da marca, porque guardamos as memórias e conservamos a estima. Por uma tarde mais, o mundo falou dele e falou do Chelsea com admiração. Foi sempre assim.

No fim da minha vida, terei querido estar em muitos lugares a que o futebol me levou ao longe. Um deles será certamente aquela bancada do Etihad, em Setembro de 2014, na tarde em que os adeptos do Chelsea tiveram a grandeza de despedir-se orgulhosamente de pé do adversário a quem deviam tudo o que são.

1 comentário:

Anónimo disse...

Brilhante texto e brilhante Lampard !

André Arêde