quinta-feira, 4 de setembro de 2014

O United que vivemos


Ideológica e espiritualmente, o meu clube inglês será sempre o Liverpool. É daquelas coisas que eu não vi, que não experimentei, mas que sei que está certa. Não se explica, mesmo que eu já o tenha tentado explicar. Faço o salvo conduto, porque depois é inevitável ser honesto: a minha geração cresceu com outro gigante. Apesar de rivais insolúveis, aos olhos de um afficionado do jogo será sempre impossível hostilizar a outra nação vermelha de Velha Albion. O Liverpool é a minha utopia. Pragmaticamente, porém, a quota-parte dos meus sonhos acabei por vivê-la no Teatro onde eles moraram nos últimos 20 anos, derramados da batuta encantada do maior de todos os feiticeiros.

Escrevi, no texto em que me despedi dele, que nunca acreditei que o United fosse alguma vez ter outro treinador. Quem viveu na constelação mitológica que uniu a Catalunha a Moscovo, nos 10 anos que intervalaram os seus dois icónicos títulos europeus, vai sempre perceber. Esse United foi muitas coisas: um cruzamento do Beckham, um passe do Scholes e um pique do Giggs; foi aquele golo do Solskjaer, no fim duns descontos que duraram mais do que algumas vidas inteiras, e foi o recorde de títulos; foi ver crescer à nossa frente a lenda do novo Milénio, there’s only one Ronaldo, e foi cada tarde inesquecível sob o sol frio de sábado, em Old Trafford, enquanto a Premier League se tornava, de vez e para sempre, no maior espectáculo do mundo. Esse United foi muitas coisas; nenhuma, porém, maior do que Sir Alex Ferguson.

Diz-se que os homens passam e o clube fica, mas a verdade é que há homens que nunca passam e clubes que não ficam, pelo menos como eram. Era inevitável que, depois de Ferguson, se estranhasse, se duvidasse, que doesse. Confesso, no entanto, ter desconfiado que a sua plenipotência seria suficiente para quase tudo, que o seu vulto podia remediar até a sua própria partida. Esse parece ser, porém, um dos raros desafios que o mestre não pôde suplantar. Moyes nunca foi um iluminado, mas a sucessão velada e a venerável estabilidade que lhe ofereceram não fariam adivinhar o maremoto que se sucedeu. O super-campeão em título, a equipa europeia com mais presenças na Liga dos Campeões, aquele monstro de Instituição que era, no fundo, o único United que conhecíamos, ruiu num desconcertante estalar de dedos, vulgarizado quase todos os dias da época, até ao humilhante 7.º lugar na grelha final. Nada nos preparara realmente para aquilo.

À equipa que, no próprio ano anterior, tinha obliterado a melhor liga do mundo, diagnosticou-se envelhecimento geracional e falta de renovação, especulou-se com a carência de compromisso e de ambição, contaram-se lesões e denunciou-se a falta de investimento, mas a Inquisição pública só devorou verdadeiramente um homem. No clube que conservara o mesmo treinador durante um quarto de século, Moyes não viveu para ver um segundo Verão, perdido num buraco negro existencial perfeitamente desamparável. Foi como uma epifania: quando alguém é demasiado bom, durante demasiado tempo, tende-se a achar que o trabalho é, afinal, muito mais fácil do que parece. Moyes percebeu que não da forma mais crua.


Se os clubes maiores têm uma benção, é poderem começar de novo sempre com a mesma ilusão. Independentemente do que aconteça, estará sempre no horizonte um Agosto de promessas. Este United tornou-se na hipérbole dessa ideia. Menos habituado a perder do que os outros, só havia realmente uma opção para o novo ano: que a Ira de deus, e dos diabos, se abatesse sobre a Europa futebolística. Tenho de admitir que participei da histeria colectiva, assim que se anunciou a primeira pedra. Depois do honesto enfado com o bom partido que era Moyes, o anúncio da chegada de Van Gaal foi quase comovente. Se me tivessem pedido 3 ou 4 nomes à altura da sucessão, o dele estaria sempre lá. Irascível, cáustico, louco, genial. Um dos poucos com tamanho suficiente para olhar o emblema de frente. A epopeia laranja e mecânica do Brasil foi só o reforço redundante de toda a expectativa. Van Genius e o United: era um romance feito no céu.

Nunca ninguém ganhou nem perdeu nada com um mês de época, e nunca é demais lembrar isso. É mais difícil, contudo, ficar indiferente ao rumo, quando não o vemos. Depois de uma pré-época idílica, sem mais, nem menos, o pesadelo recomeçou exactamente de onde tinha acabado, alheio a simpatias ou a paliativos quaisquer. Mais do que o desastre de resultados - 4 jogos, 0 vitórias, 2 golos marcados e uma eliminação pornográfica -, o que perturba é essa desorientação. O United habituou-nos a ser o modelo, o exemplo, a saber sempre o que fazer, de forma tão autoritária, quanto intrínseca. O United era a medida sob a qual todos se regiam, a que todos tentavam imitar. Para onde é que olhamos, pois, quando o farol se apaga? Sabemos que há talento, liderança, fome; mas vemos aquilo e é como se nem Van Gaal percebesse porque é que não está a funcionar. Isso é que é assustador. Ele, claro, tem sido igual a si próprio: instaurou uma táctica inortodoxa, gastou 200 milhões em reforços - acrescentando que, no Bayern, alguém o teria parado - e manteve o dom de dominar qualquer conferência de imprensa. O que não parece é haver forma de descobrir se o trauma é circunstancial, táctico, emocional ou filosófico. Tudo o que sabemos é que, à entrada do segundo ano sem ele, Fergie parece mais insubstituível do que nunca.

Van Gaal ainda tem tempo de sobra para fazer tudo bem, quiçá, até para lutar pelo título, como o próprio reclama. E continuo a gostar de pensar que ele é um homem certo para o lugar, porque é ali que pertence gente feita do seu carisma. Acredito que este United ainda pode ser um caso especial... pena que olhemos à volta e já não o consigamos reconhecer. A equipa que, pura e simplesmente, não tem um único defesa de elite, decidiu, no último dia, pagar a Falcão 42 euros por minuto para ser o seu ducentésimo avançado. Esta febre gatsbyana é justamente tudo o que o United nunca foi. Vi, há dias, a equipa com que Ferguson cilindrou o Arsenal, há irrisórios três anos atrás. 8-2 em Old Trafford. Acho que não dá para evitar o sorriso. Talvez este United ganhe, talvez um dia venha a ser uma grande equipa. O que custa, no fundo, é que nunca vá voltar a ser o mesmo.

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