sábado, 6 de setembro de 2014

Toy Story


'El Madrid ha seguido buscando la fórmula cuando ya la había encontrado'
Valdano

'Si fuera yo quien mandara, a lo mejor no lo habría hecho así'
Ronaldo

Lisboa, 24 de Maio de 2014. Estádio da Luz. Minuto 110, final da Liga dos Campeões. O Madrid, ainda hipertenso, respira sofregamente, na adrenalina de continuar vivo. Aquele era um dos jogos que não tinha preço. Era a profecia do tamanho de uma nação inteira, conjurada nas chuteiras de Di Stéfano e almejada durante os 60 anos seguintes. La Décima. Jogada, por ironia, na primeira final da História entre equipas da mesma cidade. Que o sonho maior tivesse de ser conquistado ao Atlético era a derradeira e a pior de todas as perversões. Minuto 110. O Real, ainda lívido, nem pudera congratular o milagre que fora aquele empate, porque uma final continental não espera por ninguém e porque o rival dedicava-se a viver de faca nos dentes, à espera do mais pequeno deslize. Tudo à volta era guerra de nervos. Foi esse o momento em que um anjo da guarda saiu a voar.

Xabi Alonso resumiu-o tão bem quanto possível. Gracias por todo, Fideo. Nunca olvidaremos el zigzag de Lisboa. Num jogo espectacularmente simbólico para a História do maior clube do mundo, assombrado pelo prenúncio de morte e tenso em cada músculo, Angel Di María esmagou-nos um dia mais com a magia dos que já nasceram assim. Um, dois, três adversários pelo caminho, como se não fosse a melhor defesa da Europa, como se ele estivesse num palco só seu, iluminado por um holofote celestial. Se fazes aquilo numa final dos Campeões, podes fazer tudo o que quiseres na vida. Se fazes aquilo numa final dos Campeões e não te assinam um casamento vitalício, estás a lidar com loucos dos quais deves fugir. O mais incrível, neste caso, é que, para tantos e tantos outros, essa teria sido a jogada de uma carreira. Angelito fê-la três vezes durante essa noite quente de Lisboa. O mais incrível, aliás, é que ter decidido esse jogo não passou de uma nota de rodapé à sua época desconcertante.


Assistir à sua criatividade, à velocidade e ao seu jogo de pernas, à fantasia na extrema acepção da palavra, é o capítulo em que o futebol é menos jogo e mais arte clássica. Ao vê-lo, calha-me sempre lembrar de uma lenda que morreu dez anos antes de eu ter nascido. Curiosamente, partilhava com Di María a mesma candura de cognome: era Mané Garrincha, o ‘Anjo das Pernas Tortas’. Em miúdo, Garrincha foi vítima de uma poliomielite, que lhe deixou uma perna mais curta do que a outra e ambas arqueadas. Os médicos diziam que ele nem deveria conseguir andar; Mané escolheu ser o maior driblador de todos os tempos. Os defesas reconheciam que era impossível pará-lo, porque não compreendiam realmente como é que ele funcionava. Em galope, como que reconheço em Di María esse enigma genial, uma certa supra-distrofia que ele impinge a cada quebra de rins, a cada vírgula, a cada rabona, qualquer coisa de cabalístico que o torna vertiginoso, deslumbrante e imparável.

Pode não ser literal, mas não será chocante dizer que Angelito foi o futebolista de elite internacional que mais evoluiu nos últimos 5 anos. É fácil lembrar-se do miúdo franzino e malabarista que chegou ao Benfica, na pele de tantos outros, e constatar, ao contrário desses anónimos, as enormidades que ele soube beber ao longo dos anos. Jesus, Mourinho, Ancelotti, é verdade que teve sorte com os treinadores e com as eras de Benfica e Real, mas o que conseguiu assimilar de ano para ano foi, sob todas as medidas, extraordinário. Da canhota vertical no losango de Jesus, à extrema-direita açucarada do ataque de Mourinho, até, finalmente, ao visionário e subversivo médio-interior de Ancelotti. É um caso honestamente raro de um futebolista que se educou cada vez mais, sem chegar a capar um pingo do génio nato que o notabilizou. Passou, simplesmente, a aplicá-lo melhor. Sempre melhor.


Com Ronaldo e Modric, Di María foi a trindade a quem o Real deve a Décima pela qual tanto esperou. Aos 26 anos, com todo o melhor ainda pela frente, e depois da mais espectacular das metamorfoses tácticas, Angelito tornou-se num futebolista virtualmente impagável. O Real, como sempre... entendeu ao contrário. Na primeira esquina, pegou, pois, em nada menos do que 80 milhões de euros e comprou outro para o seu lugar. Às vezes acho que a direcção merengue sofre de uma condição médica qualquer e que, por isso, mais vale relevar a verdadeira esquizofrenia que se pratica em Chamartín a cada Verão, tal como se trataria qualquer doente grave que é inimputável.

Depois de anos de derrotas ou de vitórias de guerra, o Real encontrara finalmente a sua paz. Um treinador brilhante e senatorial, futebolistas notáveis e articulados numa sinfonia quase perfeita. Bom futebol, compromisso, estabilidade, reconhecimento e moral, tudo isso na antecâmara do ataque ao campeonato e à época dos 5 troféus para ganhar. Nas palavras de Valdano, o Real tinha mesmo encontrado a sua fórmula. Como um perfeito sociopata, porém, Florentino Pérez não pôde controlar o impulso irreprimível de gastar 100 milhões em craques que o Mundial fez famosos, para poder desterrar, em menos de um piscar de olhos, autênticos pilares que lhe tinham acabado de oferecer tudo em bandeja de prata. A gestão desportiva do Real é um pesadelo daliano qualquer, uma aberração tão incompreensível que olhar para ela deve deixar-nos mal-dispostos. Ver Xabi Alonso e Di María empurrados à porta da rua, simplesmente porque já não eram os brinquedos mais novos da estante, é triste, degradante e imbecil. É terrorismo futebolístico, é a linha imperdoável a partir da qual todo o respeito já se perdeu.

Nunca gostei do Real, mas habituei-me a gostar de toda a boa gente que lá estava e a torcer pelo seu sucesso. A minha pena é que ainda lá estejam outros tantos, sendo escusado falar de Ronaldo. Só espero que ele, ao menos, saia da loja de brinquedos antes de ser devorado por ela.

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