quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

O último romântico


Daqui a 20 anos, ninguém vai saber quem foi Riquelme.

O futebol terá continuado a ser maior e mais rápido, teremos sido todos bombardeados pela quarta revolução digital e a memória não vai ser o que nos lembramos dela hoje. Saberemos tudo de todas as coisas e não teremos remédio a não ser transformar de vez a bola em números. Os golos, as assistências, as finais, os títulos, os recordes. Só nos sítios em que milhões estejam a ver, como é óbvio. Nos estádios potentes da Emirates e da Etihad que, na altura, talvez até já flutuem, quais naves futuristas, como as donas que lhes darão o nome. O pós-apocalipse não tem necessariamente de ser a construção sobre a destruição. Pode, tão só, ser a descolagem final de um paradigma. Daqui a 20 anos, ninguém vai poder saber o que foi Riquelme. Não conseguirão compreender que bicho raro era aquele, que não podiam medir, cronometrar, somar ou subtrair. Como em qualquer pós-apocalipse, haverá, porém, uma Resistência. Um Distrito 13 qualquer. Se nesse mundo houver realmente um exílio que valha a pena, eu, pelo menos, começava a procurar em Buenos Aires.


Imagino-me a vaguear indistinto por aquelas ruas sujas de carisma da que um dia chamaram Paris Latina. A deixar-me envolver com cada mural pintado, com cada músico de rua e com o calor do Atlântico Sul a beijar-me a cara, até ser forçado a parar, de repente, num empedrado qualquer, por dois miúdos a correrem, quais socorristas incumbidos da grandíssima tarefa de ressuscitar uma bola de catchu, relíquia há muito esquecida no tempo. Seja em que época for, qualquer pessoa de princípios saberá que é inevitável esse caminho desembocar na maior catedral da cidade, até se, nesse futuro distópico, já a tiverem desmanchado num Coliseu qualquer. Acredito que, até ao fim dos tempos, qualquer um que se aproxime da Bombonera sentirá no peito o rumor de todos os milhões que lá choraram, sangraram e fizeram tremer o chão. Na esquina seguinte, na parede em que El Diego está coroado com a boina de Guevara, saberei instintivamente que é a minha vez de sibilar, qual oração. Si yo fuera Maradona, viviría como él.



Na periferia da Bombonera, parece-me evidente que todas as Cervecerías são Jardins do Éden, em que o néctar sagrado derrama de nascentes para nos lavar a alma. Entro numa e vou-me sentar ao balcão, como mandam as regras. À meia-luz da tarde, um tango de Gardel estará a ecoar em fundo, enquanto, mais perto, um rádio mui antigo, de caixa envernizada e válvulas pulsantes, lembrar-me-á, de lágrima no canto do olho, dos relatos de Victor Hugo Morales. Fiz de propósito. Mal cheguei, sentei-me ao lado de um velho contador de histórias, daqueles que reconhecemos pela cara, daqueles que têm o mundo para nos contar. Toda a sua expressão se ilumina, pois, quando lhe faço a pergunta irreprimível: quem foi, afinal, Juan Róman Riquelme? As melhores pessoas do mundo são os contadores de histórias.


Ainda não disse uma palavra sobre o futebolista e já escrevi metade do que era preciso. Riquelme não foi um futebolista. Foi o espírito de um tempo e de um lugar, o guardião de um escudo e de uma maneira de estar e de jogar, o coração de uma cidade. Sempre no seu jeito tão altivo e grave, tão abnegado, de carregar o mundo às costas. Chamaram-lhe, um dia, o Maradona triste. Se é verdade que o futebol foi-lhe cruel, condenando-o a que o planeta nunca fizesse jus ao seu talento e à sua dimensão mística, uma verdade subsistirá até ao fim: na sua Buenos Aires foi feliz. Nunca voy a poder devolver todo lo que los hinchas me dieron. Adorado como um deus no meio de um panteão. El otro día vino un hincha al entrenamiento, me pidió permiso y se sacó la remera. Tenía los brazos tatuados con mi cara, yo no lo podía creer. Foi embora, voltou. 14 anos no Boca. 5 campeonatos, 3 Libertadores, 1 Intercontinental. 4 vezes Jogador Argentino do Ano. Um conto de fadas, até ao dia em que o traíram na sua própria casa. No ano passado, Daniel Angelici, o presidente do clube, fechou-lhe as portas por achar que a era de Román estava enterrada. O bairro de La Boca abeirou uma guerra civil por sua causa, ele, no entanto, entregou as armas. Nunca teria coragem de ser o motivo de uma. Angelici es el presidente del club. Yo soy bostero de verdad. No sé cuántos hay en la dirigencia de Boca, disse emotivamente, partindo. Foi jogar para a 2.ª Divisão, no Argentinos, pela razão mais simples do mundo. A mesma que o levou a reformar-se agora, assim que o clube subiu.
Yo de chiquito soñaba jugar un partido en La Bombonera. Tuve suerte, desde el primer partido que jugué, frente a Unión, la gente me ovacionó. Yo amo a este club. Cuando me pongo la camiseta de Boca no me pongo cualquier camiseta, me pongo mi camiseta. Soy bostero y voy a morir bostero. Ahora seré hincha, sufriré con Agustín [o filho]. Yo no puedo jugar contra Boca.

Riquelme foi o maior jogador que menos vimos. O seu falhanço no Barcelona de Van Gaal, onde chegou com toda a ilusão do mundo, no Verão de 2002, deverá para sempre ser lembrado como uma das maiores perversões da História do Jogo. Podiam ter sido tão felizes, os dois. Mas não era para ser. Formou-se no Argentinos, glorificou-se no Boca, falhou no Barcelona e emergiu para a segunda vida numa terra pequena, que fez muito grande. Uma jornada à imagem e semelhança do deus que tantas vezes disseram suceder. Quando a pomposa Europa dos Campeões lhe fechava a cara e lhe afiava a guilhotina, Román descobriu que, mesmo nesse mundo impessoal, desapaixonado e vampírico, ainda havia, afinal, gente por quem lutar. Uma cidade com 51.367 pessoas, na costa da Comunidade Valenciana, de cara virada para o sol do Mediterrâneo, foi um refúgio melhor do que o céu. Vila-Real. Um clube que tinha, então, 4 épocas de primeira divisão veio a fazer, com ele, um 3.º lugar e uma meia-final da Liga dos Campeões. Acredito, até hoje, que só funcionou porque ali também se vestiam o amarelo e o azul. Afinal, um tigre não consegue jamais despir as suas riscas.


Se há uma imagem que lhe marca a carreira é a dessa meia-final da Liga dos Campeões 2006. No El Madrigal, no último minuto da segunda-mão. A glória que a Europa lhe assaltou a vida toda, à distância de 11 metros. Um penalty que podia ter reescrito um jogo, um prolongamento, uma final e uma carreira. Falhou. Riquelme foi o anti-herói até ao fim. Longe da ribalta, longe do glamour, longe da globalização dos troféus maiores. Falhou esse pontapé, sim, mas se há uma verdade dessa noite é que nenhum dos 22 mil villarrealenses que lá estiveram teria trocado o seu legado por essa final. O privilégio de desfrutá-lo durante aqueles anos será, para sempre, a maior vitória das suas vidas. Anos depois, ele fez a formalidade de relembrá-los de que tinham estado sempre certos. Quando o clube desceu, em 2012, Riquelme não hesitou e ofereceu-se para ir jogar na 2.ª Divisão, assim lhe pedissem. He pasado años increíbles ahí, he disfrutado mucho. Cada año voy de vacaciones a Villarreal porque sigo teniendo mi casa ahí. La gente me trata con el mismo cariño de siempre y la realidad es que cuando me necesiten yo voy a estar siempre a disposición de Villarreal. A fidelidade não tem preço, a gratidão não tem lugar.



Juan Román Riquelme. Román, de romance. De um futebol apaixonado e apaixonante, do coração à ponta das botas. Pé direito, chuteiras sempre pretas, porque o jogo é mais simples do que parece. A receber, rodar, pausar e lançar com controlo remoto. A descer pelo campo, meneando entre cada adversário, um braço ligeiramente levantado a proteger-se, como que a pedir-lhes clemência quando, na verdade, sabia bem que a bola ninguém lha poderia roubar. O recital que faz do futebol a 8.ª maravilha do mundo, com a bola pegada ao pé, como se fossem siameses cósmicos, até inventar-lhe, delicadamente, uma elipse invisível. Sempre um compasso abaixo do resto do mundo, no seu próprio fuso horário, pois os outros que se gastassem em correrias imbecis, que não nasceram com o dom da adivinhação. Yo en la cancha veo todo.

Um mago, um poeta, um grande artista, o último 10, em cada vírgula, em cada caneta, em cada pirueta, em cada canhão. Um sobredotado que já nasceu para fazer da bola uma utopia para quem a inventou. Um profeta que nunca desdenhou o seu destino hercúleo, consciente de que ser um génio é o fardo mais solitário do mundo. Um ídolo porque imperfeito, falível e, sobretudo, pela pertença. Pela identidade. Riquelme não foi uma pop star, não foi de toda a gente. Foi das suas pessoas e isso bastou-lhe sempre, mesmo que na América do Sul ou num pequeno vilarejo europeu. Esse é o futebol único que ameaça morrer com ele, porque a globalização mata-nos aos poucos. Pensar, por estes dias, no tão pouco que vimos dele, é um atentado intemporal. Nas vezes que o reduzimos a fintas do youtube ou a golos de domingo à noite, só porque ele não andava nos sítios de bem. Nos Bernabéus e nos Old Traffords deste mundo. O que perdemos.

A verdade é que nunca estivemos à tua altura, Román. Que daqui a 20 anos não tenhamos morto para sempre o teu futebol.
La pelota me lo ha dado todo. Así como las muñecas son lo más lindo para las nenas, para mí la pelota ha sido el juguete más hermoso que pudo existir. El que la inventó es un verdadero ídolo, el más grande de todos. Ojalá la gente haya disfrutado de cómo jugué. Yo intenté pasarla bien.

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