Cresci com muitos grandes jogadores. Cresce-se sempre. Com a bola no pé, Zidane, ainda hoje num altar, acima deles todos, sem comparação. Mas também Rivaldo, Del Piero, Maldini, Roberto Carlos, Giggs, Pippo, Nistelrooy, Pirlo, Ronaldinho, Drogba. Portugueses, Rui Costa, sem pensar duas vezes. Nem todos os maiores dos maiores, mas um miúdo gosta de quem gosta. E eu gostava destes. Gostava, mas como quem admira. Nunca gostei o suficiente para ser da equipa deles, para ganhar com eles. Isso foi depois.
Gostei de ver o Porto limpar a Europa, mas cá entre portas há uma coisa sagrada, e não há vitória que me possa dar muito gozo se não vestir de verde e vermelho. No momento em que ele aterrou em Londres, porém, tudo se conjugou. Foi quando comecei a ver a Premier League como louco. "Yes, I think I'm special", e um tanque de azul a chocar a Velha Albion. Esses títulos do Chelsea sim, festejei como se fossem meus, e contra Ronaldo, porque era assim que tinha de ser. Terry-Lampard-Drogba, vi nascer essa Santíssima Trindade, que o universo, ingrato como ele é, só celebraria Campeã da Europa uma vida depois. Os dez mil derbies inigualáveis, pejados das histórias mais históricas, a cabeça levantada em Anfield, naquelas meias-finais de derrotas metafísicas, as batidas de frente com Wenger e Benítez, e o vinho com Ferguson, cada um no seu lugar.
Acabou, ironia das ironias, num dia das mentiras. Reza a lenda que Drogba chorou no balneário como uma criança. Foram feitos um para o outro, e, no entanto, acabou. Milão viria a ser o segredo mais mal guardado desse Verão, num histórico esquecido por deus. "Speciale", começou a falar italiano limpo na conferência, as primeiras palavras de outro bicampeonato recheado de histórias dolosas da Máfia e dos padrinhos, das algemas invisíveis, que só poderiam desembocar nessa epopeia verdadeiramente inigualável até à final de Madrid, no ano seguinte. O que eu festejei essa vitória do nosso Inter. A melhor defesa do espaço sideral, senhoriada por um tal de Zanetti, puto de 20 anos, certamente, tal era o fulgor. Mais o cérebro de Cambiasso, as botas aladas de um Pequeno Genial holandês, a rebeldia explosiva de um soldado reconvertido dos Camarões, e as finalizações de algodão de El Principe. Ainda hoje fico estarrecido com aquele jogo no inderrotável Camp Nou, o maior de todos os seus impossíveis. Tal como me contagia a comoção espectacular do pós-Champions, ainda no relvado, e, claro, aquele abraço a Materazzi nos fundos, que veio lá do sítio onde a alma começa.
A melhor equipa da História era, no entanto, o Golias que se queria voltar a enfrentar, e a consequência só podia mesmo ser o supremo dos desafios. Ressuscitar o maior dos gigantes, e torná-lo ao seu lugar, no balneário dos galácticos, o mais impessoal e o menos carismático de todos os que teve. O 5-0 no primeiro jogo falou pela macieza da tarefa, mas a História fundia ali muita coisa, fundia, sobretudo, os dois predestinados deste canto em que a Europa acaba, e há coisas que têm de ser. Aconteceram na melhor Liga que os livros já viram, e o campeão fez-se estratosférico, com recorde de pontos, recorde de golos, e a bandeira poeticamente roubada no castelo do inimigo, pelo tal que levava o 7 às costas, claro. Quase tanto como as do Marítimo, só rejubilei com as vitórias dele.
Não fiquei adepto do Chelsea, nem do Inter, e não ficarei do Real, quando ele (e o outro ícone) saírem finalmente de lá. É que o meu clube internacional, é bom de ver, sempre teve o mesmo nome. Não gosto de tudo o que ele faz, e muita coisa é defeito mesmo, mas acho estapafúrdio que, ainda hoje, achem que há mais arrogância do que personagem. O despeito que tanta gente lhe devota cá, o torcer que perca, dá-me vontade de rir. É a pequenez portuguesa no seu estado mais inalterado. Odiar o que ganha, porque ele ganha, odiar o melhor, porque ele é o melhor. Odiar de graça porque, no essencial, ele é exactamente isso, um de nós, mas melhor do que nós, não uma coisa fina do estrangeiro, que o povo saloio possa gostar sem lhe fazer sombra nenhuma. Nessas cabeças, não entra a sua excelência tão absurdamente extrema, a sua capacidade de liderança tão grosseiramente contagiante, e a cultura de vitória com um nano-milésimo da qual podíamos todos fazer deste país uma potência de qualquer coisa. Ver Mourinho e não ver a inspiração, não ver o desafio omnipotente à transcendência, é uma tragédia.
50 anos, idade bonita. Falta a outra metade, em anos e em vitórias. Fico contente de pensar que se até hoje tive um ídolo no futebol, esse ídolo foi ele.