segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Fomos aqueles por quem estávamos à espera


Em toda a vida, haverá apenas um punhado de dias com importância política suficiente para defini-la. Boa parte das pessoas nem chegará a tê-los, porque nunca se identificará o suficiente, nem acreditará em algo pelo qual valha a pena lutar. Para outros será um presidente, para uns um governo, para alguns um partido e para poucos um homem. Para mim, foi hoje.

As pessoas de fora nunca poderão perceber o que significou o 29 de Setembro de 2013 para a Madeira. Exactamente como o resto da nossa realidade política, é o tipo de coisa que só compreende o alcance quem a viver. Há 35 anos, um partido e um Governo tornaram-se numa e na mesma coisa para a ilha e, durante essa eternidade, isso nunca esteve sequer perto de mudar. O PSD foi veneno na água. Foi a mão que suborna e chantageia, que ameaça com dinheiro e com emprego, e que nela mantém a gente a comer, porque nunca se morde a mão que nos alimenta. A febre foi radicalizando ao ponto de já nem ser branqueada. Desta vez, Jardim ameaçou abocanhar a RTP Madeira ou implodir financeiramente as Câmaras que o traíssem. É esse o tipo de impunidade com que a Cosa Nostra se habituou a fazer as suas coisas e, como num romance orwelliano, inculcaram-nos que o que não existia era alternativa. Que havia o partido-Estado ou o Adamastor, o PSD ou o fim. As pessoas, agredidas por essa lobotomia, habituaram-se a aceitar o culto do chefe e o culto do medo, a aceitar essa violência doméstica e a conservá-la de uma maneira estranha, porque, como qualquer abusado, achavam que isso era tudo a que podiam aspirar.

O que aconteceu hoje na capital e em 2/3 da Região não é o sucesso de bons presidentes, nem a derrota de um mau partido, não é o triunfo das alternativas, nem a hecatombe de um ditador. É a vitória dos que acharam que há um dia em que toda a gente tem de importar-se. Dos que acharam que nenhuma cor pode ficar 40 anos no Poder, simplesmente porque isso é errado. Dos que arriscaram dar o passo em frente e fazer História, por mera consciência e por sanidade, e porque entenderam que devíamos a nós próprios esse respeito. Dos que acharam que um partido não pode ser esse polvo de Estado e dos que já não admitem viver num regime autoritário legal. Dos que não aceitam o despesismo eleitoralista barbárico que nos arruinou o futuro, pejado de obras aberrantes que só encheram os bolsos à camorra, e dos que defendem que ainda conta para alguma coisa não perseguir jornalistas, nem caçar quem pensa de maneira diferente. Dos que querem ter igualdade de oportunidades sem ter de fazer juramento ao partido e dos que querem falar alto sem serem aconselhados, e sem perderem o emprego ou a sorte dos filhos. O 25 de Abril não foi hoje, mas o nosso 25 de Abril é isto.

Ver Cafôfo na varanda a reclamar a vitória no Funchal foi daquela emoção que dá um nó na garganta. É que, disseram-me a vida toda, aquilo não era possível. Ver que foi, que aconteceu e que eu o fiz acontecer, é de uma magnitude indescritível. No dia em que votei pela primeira vez numas Regionais, aquele voto, aquela cruz insignificante no boletim, foi o vórtex que nos mudou a sorte a todos. Um dia, escolhi acreditar que isso valia a pena. Que a Madeira não tinha de ser uma caricatura de Absolutismo e que podíamos ter orgulho na nossa maneira de estar enquanto sociedade política. Nunca fiz parte de Juventude nenhuma e nunca tive nada a ganhar. Mas acreditei que as coisas podiam mudar, porque achei que isso era a única coisa a que a minha geração se podia permitir. Porque se eu não puder acreditar em nada aos 23, nunca vou poder. Hoje, o futuro veio-me dizer que sim, que valeu. Que o dia em já não somos um feudo monárquico, e em que os madeirenses levam a cabeça mais levantada do que nunca, porque quiseram e puderam ser melhores, chegou. Guevara disse, uma vez, que não era um libertador, porque esses não existiam. Eram as pessoas que se libertavam a elas próprias. Hoje foi o dia em que fomos livres.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

O que seria do futebol português com vergonha na cara?


"É verdade que em algumas situações os nossos concorrentes mais directos têm sido favorecidos. Não gosto de comentar o que não tem a ver com o Benfica, mas quando as equipas são ajudadas por terceiros, as coisas tornam-se mais fáceis"
Jorge Jesus

"Quero dar os parabéns ao Jorge Jesus, que conseguiu jogar em três campos. Houve uma clara influência da equipa de arbitragem. Parabéns a quem condicionou não apenas este, mas também o jogo do Sporting"
Paulo Fonseca

"Não sou como outros que falam quando são prejudicados mas depois são beneficiados e ficam calados. Os três grandes são normalmente mais beneficiados e seria uma hipocrisia estar a falar de arbitragens"
Leonardo Jardim

Uma jornada em que foram os três prejudicados é definitivamente a ideal para falar da histeria que se apoderou do burgo no fim-de-semana. Jesus parece que cheirou a borrasca e resolveu dar o mote: coitadinho e humilde, não quis deixar de responder a uma pergunta manhosa de um jornalista e lá disse, muito contrariado, que sim, que o Benfica tem sido o patinho feio da Liga e que tem visto os outros dois barões surripiarem os pontos todos pela porta do cavalo. No fundo, tudo o que Jesus fez foi reiterar a malfadada sorte dos grandes: quando não são prejudicados, há outros a beneficiarem mais do que eles. É sempre assim, sempre contra em caso de dúvida. Qualquer adepto de um sabe a rudeza da vida que tem. Pode haver quem diga que, se todos berram da mesma maneira, o mais provável é a acefalia ser transversal. Ninguém disse, porém, que vida de grande era fácil.

Aproveitando a deixa do chiclete, Paulo Fonseca conseguiu fazer ainda pior e comportou-se como um miúdo idiota e mimado, na primeiríssima vez em que viu fugir pontos enquanto treinador do Porto. Depois de um jogo em que foi banalizado por uma equipa com um orçamento mais de 10 vezes inferior, Fonseca fez tudo para que acreditemos que quem é pequenino, é para sempre, e disparou a parolice fácil sobre o maior adversário, numa flash-interview grotesca. Tal como Jesus, no entanto, foi recebido com alvíssaras pela maior parte do seu exército. Pondo de uma forma simples, é por isso que o futebol português é uma merda. Pela demência do jogo ser sempre secundário perante um clubismo retorcido e febril, ostensivamente tripolarizado, que faz com que a maioria da gente não consiga ver um palmo à frente das suas palas. Porque este tipo de discursos funciona, e porque treinadores cujo mínimo era que tivessem uma gota de brio profissional, se prestam a eles. E, como se não bastasse, pelo facto da comunicação social contribuir para esta estupidificação e dar-lhe o eco pornográfico que deu por estes dias.

Nisto, ouvi alguém sair da Caverna pela primeira vez e, a um trago, cometer a alucinação de produzir a afirmação mais digna da História do futebol português. Ninguém deve ter dito a Leonardo Jardim que o cargo vinha com grilhões, e que ele tinha de ficar de frente para a parede, como os outros prisioneiros, em vez de lhes vir dizer que há luz na rua. Pelo contrário, o treinador do Sporting, a quente de dois pontos perdidos com a não marcação de um penalty escandaloso, resolveu sair-se com uma barbaridade lesa-majestade: afinal parece que os grandes são cronicamente beneficiados e que só se não tiverem uma amostra de decência é que podem vir reclamar da sua condição na praça pública. Não sei quem é este louco, mas parece perigoso, e o melhor é que arranjem forma de devolvê-lo à Caverna o quanto antes. É que, se não, o que seria do futebol português sem a sua dialéctica terceiro-mundista? Comprometido com a excelência e nivelado por cima, em vez de confortável no fanatismo e na mediocridade? Sem adeptos descerebrados, treinadores provincianos e lixo mediático? O que seria do futebol português com vergonha na cara e um pouco de respeito por si próprio?

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Emmys 2013: lembranças para todos, Homeland nas cordas e uma vitória nos descontos


Era uma cerimónia anormalmente aberta, com Homeland, na ressaca de uma super-temporada, a defender os anéis perante o groundbreaking House of Cards, a primeira série de sempre nomeada sem ser teletransmitida, e a vertiginosa season finale de Breaking Bad. Na 25ª hora, e depois de ter acumulado derrotas nas outras grandes categorias, foi mesmo a vez do drama de Walter White virar o jogo e reclamar, pela primeira vez, o emmy mais cobiçado da noite. É ingrato avaliar, porque pausei o Breaking Bad no fim da segunda temporada. O respeito mantém-se, é certo, e não tenho nenhuma dúvida de que continua a ser feito do material de que se ganham os prémios. O grande adversário, contudo, era mais do que isso: se tal existe, Homeland teve uma temporada perfeita. Não com um ou dois momentos icónicos, mas a ser psicoticamente bestial em cada um dos seus incríveis 12 episódios. Não dá para fazer melhor do que aquilo. Se no ano passado talvez tenha ganho antes de o merecer, não ter premiado a majestade em que se concretizou é um efeito colateral demasiado doloroso.

À jóia da Showtime só coube renovar metade das vitórias do ano passado (numa noite de vencedores baralhados, empatou a dois com Breaking Bad nas grandes categorias). A sensacional Claire Danes continua a fazer o pleno de prémios como Melhor Actriz e a merecê-lo em cada centímetro, sendo que Argumento também teve direito ao bis, por um episódio inesquecível ("Q & A", lembrado aqui), que bateu dois Breaking Bad e a mais propalada hora de televisão do ano: "Rains of Castamere". Não retiro uma palavra ao que escrevi sobre essa magnum opus de Game of Thrones, mas não consigo escrever nada que possa menosprezar a grandiosidade das linhas de Homeland. A agressão da noite veio com Melhor Actor: o bestial Damian Lewis conseguiu transcender a performance original, que lhe valeu a vitória no ano passado, e tinha nos calcanhares um Kevin Spacey que deslumbrou com House of Cards e ainda Bryan Cranston (Breaking Bad), aclamado triplo vencedor. A vitória, porém, caiu do céu no colo de... Jeff Daniels (The Newsroom), um daqueles casos perturbadores de um lead que consegue ser um a menos numa série em subrendimento. Tê-los visto aos quatro e ser possível votar Daniels é tão incompreensível que nem merece argumentação.

No campo das vitórias com estima, o mítico David Fincher, crónico derrotado dos Óscares e vencedor de um Globo de Ouro envergonhado com o sobrevalorizado Social Network, estreou-se a ganhar com um produto à sua altura, a realização do brilhante piloto de House of Cards. A mais inesperada de todas foi a vitória do irascível Bobby Cannavale, que levou às costas uma temporada inteira de Boardwalk Empire. Performance monumental e 2º emmy da carreira muito bem entregue, ainda que numa categoria especial - Jim Carter, Peter Dinklage, Aaron Paul, Mandy Patinkin... -, onde todos mereciam ter levado um para casa.

Em Comédia, Modern Family cumpriu o seu incrível 4º emmy seguido, mas não teve, pela primeira vez, qualquer vencedor individual, campo onde Veep (Actriz e Secundário) pôde brilhar. É um círculo que se tem gasto nos últimos anos e que não tem sabido lidar com a novidade. Incompreensível, por exemplo, a desconsideração por New Girl.

O hosting, finalmente, foi das coisas más da noite. Neil Patrick Harris, muito elogiado pela prestação nos Tonys deste ano, regressou aos Emmys sem sal e sem chama, numa sombra da sua áurea costumeira. Ainda foi buscar um bom número lá ao meio da cerimónia, mas não chegou para emendar um resultado verdadeiramente tépido e aquém das expectativas. Para grandes momentos, ficam o corte delicioso de Kevin Spacey na introdução, à laia de House of Cards, o in Memoriam a James Gandolfini, com uma Edie Falco vastamente emocionada, e a subida de irradiante boa disposição de Michael Douglas que, aos 68 anos, ganhou o primeiro emmy da carreira (Behind the Candelabra).

Assim abriu a temporada as cortinas, agora é aproveitar.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

"As pessoas têm medo das mudanças. Eu tenho medo que as coisas nunca mudem"


É manchete no Diário de Notícias de hoje e anuncia que se fará História: o PSD não só se prepara para perder, pela primeira vez, a maioria na Câmara do Funchal como, a duas semanas do dia D, ainda não trancou a vitória, pela qual, desta vez, terá de lutar até à 25ª hora. A principal razão? Paulo Cafôfo, o candidato que, no pior dos casos, fará o melhor resultado de sempre de uma segunda força política na capital. A sua candidatura é particular: não veicula de um partido, mas de seis, incluindo o PS e o Bloco de Esquerda, e, mesmo assim, 90% dos seus vereadores, a contar com ele próprio, não têm qualquer passado ou filiação partidária. A "Mudança", como se auto-intitula, é uma candidatura branca, emanada da sociedade civil, com os partidos signatários a emprestarem estrutura à disponibilidade dos cidadãos comuns, mas a reconhecerem, eles próprios, que a hora é desses se chegarem à frente. Neste momento da Madeira, a marca que poderá vir a deixar é indizível.

No célebre "O Leopardo", o Príncipe de Lampedusa escreveu que "é preciso que tudo mude, para que tudo possa ficar igual." Ao fim de 20 anos de reinado de Miguel Albuquerque, o PSD insinua essa mesma fantasia de que, no fundo, se vai auto-injectar de vitalidade. O seu candidato, porém, não pode enganar nem os mais distraídos. Bruno Pereira foi vice de Albuquerque durante anos... e é filho do seu antecessor. Não tenho nada de pessoal contra ele, mas ele personifica tudo o que há de mau na política madeirense. Bruno Pereira já nasceu político e, antes de saber escrever, já tinha reservado a cadeira do pai. É uma fusão de nepotismo e do jotismo, um exemplo acabado da profética eternização do regime jardinista - ele que, como se não bastasse, nem hesitou em virar costas ao seu presidente, para poder estar alinhado de corpo e alma com o chefe. Bruno Pereira até pode não ser a pior coisa da máquina; votar nele, contudo, é perpetuar uma aberração de sistema que, vai para 40 anos, monopoliza a democracia para abocanhar tudo o que tem à sua volta. Um sistema febril e tentacular que já perdeu toda a noção do que o rodeia, e cujo fim se tornou numa questão de sanidade.

Mas quem é Paulo Cafôfo, afinal, senão o tipo inexperiente, que não anda mais do que atrás da própria sorte? As pessoas olham e talvez não se sintam seguras. Pode faltar o saber fazer, pode faltar o domínio dos meandros, pode-se irritar a ordem das coisas. Pode ser perigoso, para quê arriscar? Certo é que, por definição, a mudança é tão desconfortável quanto necessária. Hoje, na Madeira, é muito mais do que isso: é oxigénio. As pessoas talvez olhem para Cafôfo e vejam o que ele não tem. Eu acho que deviam ver o que ele representa. Cafôfo não é só o homem respeitável, bom falante, de boa presença. Não é, como lhe chama certamente a camorra, mais um vendedor de banha de cobra. É um homem com ideias e vontade de fazer, rodeado de gente que se anda a fartar de trabalhar para poder estar à altura. Ganhará a pulso e, por isso, nunca será acomodado, nunca relativizará a responsabilidade. É um voto pessoal, um voto de confiança. É, no fim do dia, um voto num de nós. Não no político que é filho de político e que já nasceu político, mas no tipo normal, que se importou o suficiente para vir sujar as mãos num meio hostil e feudal, porque só assim é que se pode mudar alguma coisa. "A política é feita por aqueles que dão a cara", como diria um velho episódio do inesquecível West Wing. Cafôfo deu e está a provar que, na Madeira, também há lugar para quem acha que ser político é um dever cívico e não uma profissão em si mesma.

Há um par de meses escrevi este texto. "Eu quero que as pessoas reais se cheguem à frente. As pessoas que já deram mais à sociedade do que se alimentaram dela, gente com seriedade, ideias e, sobretudo, com boa-vontade. Pessoas a sério, que não tenham nada a ganhar e que já estejam fartas de perder, pessoas que tenham a hombridade e a coragem de admitir que têm alguma coisa para dar, e que chegou a hora de o fazerem. Porque amanhã já vai ser tarde demais." Não sabia, então, que o poderia experenciar, em breve, às portas de casa, muito menos que a minha própria mãe faria parte disso. Digo-o sem pejo nenhum: tenho um orgulho tremendo que ela lá esteja. Porque é exactamente aí que devem estar pessoas com o carisma e a competência dela, e porque o faz ao lado de quem criou uma oportunidade única de fazer História e de mudar de História na Madeira, coisa que todos deviam ter consciência do que significa.

A "Mudança" é isso. São pessoas capazes do dia-a-dia, reconhecidas e respeitadas nos seus respectivos meios, que não têm um histórico de trela às velhas torneiras e que acharam que, de uma vez por todas, precisamos de mais do que a alucinação laranja. O Império amolece todos os dias e os madeirenses começam a viver essa curiosidade. Ainda a medo, mas a crerem que sim, que há futuro numa Era em que não tenham de viver num bafo de medo totalitário e complexados pelos abusos que toleram na sua própria casa. Como soaria uma canção de Leonard Cohen, primeiro levamos o Funchal, depois levamos a Madeira. É hora dos funchalenses darem o exemplo, antes de ser a vez da ilha recuperar o orgulho.

sábado, 7 de setembro de 2013

Star Trek Into Darkness


Bom blockbuster, apesar de dar a sensação de que podia ter chegado ainda mais longe.

4 anos depois do excelente regresso da saga ao grande público, os principais méritos continuam lá, mesmo que Into Darkness não tenha o brilho de renascimento do antecessor. J.J. Abrams voltou a dar conta do recado, com uma realização extremamente intensa, que, mesmo adstrita à natural parafernália de efeitos especiais, nunca é vulgar, e consegue agarrar o espectador durante as mais de 2h de curso. Star Trek é um filme de entretenimento puro e é importante sublinhar que, a nível visual, tem bom gosto e é quase sempre irrepreensível; fartos são os exemplos em que os efeitos comprometeram o resto. J.J. Abrams reforçou que, com ele, isso não é problema, e confirmou uma carreira atrás das câmaras cada vez mais sólida.

O cast também continua a dar conta do recado. Chris Pine é o tipo de protagonista tão estilizado que dificilmente pode inovar no papel, mas, seja porque razão for, este assenta-lhe bastante. Continua a ser o pretty boy rebelde tão caro a Hollywood, mas tem carácter e química como Capitão Kirk, e é uma mais-valia indiscutível. Zachary Quinto, como Spock, é menos convincente e, no resto da tripulação da Enterprise, é verdade que falta algum peso e sobeja um certo non-sense, mas, como colectivo, acho que corre bem. A ter visto muito pouco da saga original, quer-me parecer que a recriação de J.J. Abrams capta exactamente o espírito com que esta foi concebida. O joker, por fim, não podia ter sido melhor escolhido: Benedict Cumberbatch (Khan) é, claramente, o actor de outro campeonato, poderosíssimo sempre que entra em cena, e rende, por si próprio, muitos pontos ao filme.

Into Darkness não está noutro patamar porque, se boa parte de si sabe lidar com o carácter comercial, já o argumento sofre com ele. Desde logo, porque consegue ser terrivelmente abrupto. Em vez de investir num par de pontos-chave e construir-se à volta deles, tem um excesso de episódios significativos, o que os banaliza, e trata-os sempre muito rápido, aniquilando-lhes a importância, porque o espectador não tem tempo de os assimilar. Admito que, entretanto, oferece nuances interessantes, mas é incontornável que escasseia densidade à história - outra moralidade/sacrifício -, investindo esta em fórmulas que já todos vimos muitas vezes (a do herói que quebra as regras é abusiva), e não sendo, no fim de contas, alguma vez capaz de surpreender. Esta padece, igualmente, do hábito de ameaçar sem cumprir, o que acaba por ceifar boa parte da emotividade das cenas mais exigentes (pena pela carismática narrativa com Bruce Greenwood, de mentor/pupilo, não ter sido capitalizada de outra maneira).

Quando teve de decidir, Into Darkness optou por ser mais rápido e menos cirúrgico, mais leve e menos difícil. Ficou-se pelo bom entretenimento, em prejuízo de uma experiência maior.

7/10

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Um erro histórico


"Ozil é único. Não há uma cópia dele, nem sequer uma má. Tornava as coisas fáceis para mim e para os colegas. Todos o deviam querer. É o melhor número 10 do Mundo."
Mourinho

O Real saiu de um ano pesado e precisava de expiação. Precisava de destruir para construir, e precisava, em suma, de mais uma aquisição intergaláctica que voltasse a baralhar a ilusão das pessoas. Nos anos de Mourinho, caro foi um defesa-esquerdo de 30 milhões. Não é sexy, e o Real precisa desesperadamente de o ser, todos os dias. Tem no seu código genético ser essa fábrica de sonhos, ser a catarse com que as pessoas fantasiam. Não correu tudo bem no Mourinhismo, longe disso, mas, nos últimos 3 anos, e para variar, o futebol foi mesmo a principal razão em Madrid. Menos circo, mais resultados. Em Chamartín, contudo, não se sabe viver assim. Acho que Ozil é o melhor resumo dessa Era. Chegou a Madrid como não mais do que um talento para polir, à semelhança de tantos outros. Hoje, dificilmente haverá alguém a rebater que não é ele o melhor 10 do mundo. Mesmo assim, saiu pela porta dos fundos, porque uma coisa é certa: o mago de Oz nunca poderia ser uma pop-star. E, como à mulher de César, ao Real não basta ser, é preciso parecer.

Achar que Ozil é um jogador muito talentoso é um erro de palmatória. Não é. Mesut é infinitamente melhor do que isso. É um predestinado. É uma perda incomensurável não pelo que fazia efectivamente - e se calhar as pessoas não têm noção de como era extraordinária a sua produção -, mas pelo que podia vir a fazer em qualquer momento. Pela fusão brutalizante entre qualidade, inteligência e rendimento. Nestes três anos, terão sido incontáveis os jogos que resolveu por ser tão melhor do que os outros. Não a marcar os 60 golos, mas a inventar 120 caminhos impossíveis para lá chegar. Não pelas dezenas de assistências que deu, mas pelas centenas que possibilitou. Ozil é o tipo de jogador insubstituível, não porque não haja outros muitos bons, mas porque, quando se ganha a lotaria, não se deita o bilhete fora para começar a jogar outra vez. É que, não é mal lembrar, sem um Ozil a meio, nem sempre há um Bale no fim. Ter Ozil em campo era como levar para dentro um feiticeiro e uma bola de cristal. A classe pachorrenta com que carregava a bola, o génio com que a dava, a ver muito antes e muito melhor do que quase todos, e a estapafúrdia qualidade técnica fizeram-me lembrar tantas vezes o maior que vi jogar, o mágico francês da camisola 5, que, um dia, também morou naquele miolo. Alguém que tenha visto Ozil vestir a merengue uma única vez e que o ache dispensável, não sabe nada de futebol.

O problema de Ozil, como já disse, foi só jogar a bola. No Madrid, mesmo quem o faz tão gloriosamente bem, não chega. O problema de Ozil é ter sido um galáctico que só custou 15 milhões. É ser o Nemo em vez de um Armani. É resolver os jogos todos sem ter de aparecer na ficha. Como o Mourinhismo, o problema de Ozil foi não ser sexy. E, por isso, não ter nada a ver com o Real. Mesut é um futebolista de outra casta e de outro tempo ou, senão, definitivamente para outro clube.

O Real achou razoável abdicar do seu rendimento incrível, porque as pessoas precisavam de novo pão e de novo circo. É assim que provavelmente perderá o próximo campeonato, com super-jogadores de dezenas de golos a atropelarem-se em campo, no expoente da única anormalidade competitiva em que o clube parece ser feliz. Já Ozil, depois de 3 anos aos holofotes do mundo, parte agora para um sítio onde nem pelo título poderá lutar. Uma coisa é certa, porém: o Real sentirá mais falta dele, do que ele do Real. E se o jogo nem sempre é grato ao talento, as pessoas são. O Arsenal de Wenger tem muitos defeitos, mas nenhum deles é ter alguma vez deixado de ser um santuário de bom futebol. Há coisas mais importantes do que ganhar ou perder, e Londres é um bom lugar para se ser feliz.

Comedy Central Roast of James Franco


A celebração já a consagrei cá: roasts são sinónim para melhor humor do mundo. No último ano, foram amor à primeira vista e tornaram-se num vício absoluto, ao ponto de que agora, finalmente na antecâmara à espera do seguinte, a expectativa seguisse grande. À moda de um por ano com que os realiza, a Comedy Central acabou justamente o Verão com o seu evento mais simbólico, e era inevitável mal poder esperar para ir consumir, com o roasted a ser possivelmente a maior celebridade até hoje (e em melhor momento da carreira), e um dos meninos bonitos de Hollywood, James Franco.

Foi um roast bom, que não deixou de "valer o bilhete", mas do qual é justo dizer, no fim de contas, que não foi genial. Foi ofensivo, mas sempre nas malhas invisíveis do politicamente correcto, à parte da brutalidade e do choque de outros anos. As piadas de "mau gosto", assumidamente hostis sobre eventos e temas fracturantes, ficaram à porta, e, apesar de todos os roasters terem passado por maus tratos, nenhum teve de lidar com verdadeira controvérsia. A isso não será estranho um painel que, ao contrário da composição mundana de outros anos, incluiu, desta vez, gente envolvida activamente no mercado cinematográfico, ao ponto de tocar as nomeações da Academia.

Seth Rogen foi um Roast Master fraquíssimo, completamente obliterado se lembrarmos as recentes performances de glória de Seth MacFarlane (2010-2011). Esteve pouco à vontade, sempre mais ou menos envergonhado e sem nunca ter capacidade de encaixe para lidar com o que tinha de ouvir. Adam Samberg (The Lonely Island), num devaneio pseudo-subversivo, foi o pior de todos os roasters, e Bill Hader (ex-Saturday Night Live) assumiu um dos seus personagens, coisa que nunca acho que funcione verdadeiramente.

Jonah Hill pediu desculpa em todas as que disse, mas teve um grande texto e ainda demonstrou, depois, um fairplay e uma boa disposição extraordinárias, exactamente o tipo de ambiente que se quer para estas coisas. O melhor, desta vez quase sem concorrência, foi o deus, o Roast Master honorário, Jeff Ross, um mito vivo dos roasts e o derradeiro guardião do tesouro que é o conceito. Sarah Silverman, outra reincidente e outra senhora deste humor, seguiu-lhe as pisadas de qualidade, com Natasha Leggero (actriz e stand-uper) a ser uma bela surpresa, e a completar o leque de melhores da noite. James Franco, que só foi verdadeiramente passado a ferro por Ross, também não foi capaz de mascarar a sua falta de intensidade e carisma, e despediu-se com um rebate pobre, muito longe do poder, por exemplo, do grande Charlie Sheen, há dois anos.

Insisto que não foi um roast sensaborão, porque o conceito tem vida própria, e quase todas as subidas ao palco tiveram algum tipo de sumo, mas faltou claramente o alcance do velho humor de insulto, e figuras do génio de Lisa Lampanelli, Nick DiPaolo, Anthony Jeselnik, Whitney Cummings ou Amy Schumer, gente da casta do já falecido Greg Giraldo, sem qualquer pudor e aversos a qualquer auto-censura, e que elevaram, ao longo destes anos, os roasts da Comedy Central ao nível das lendas. Da próxima, que se mantenham as coisas boas - trazer gente que esteja na mó de cima, por exemplo -, mas que se voltem às assassinas e irresistíveis origens, e ao que de mais puro os roasts sempre tiveram para oferecer.

Os meus melhores de sempre:
Charlie Sheen, 2011
Donald Trump, 2011
Pamela Anderson, 2005
David Hasselhoff, 2010
Larry the Cable Guy, 2009