"I have no choice but to direct my energies toward the acquisiton of fame and fortune. Frankly, I have no taste for either poverty or honest labor, so writing is the only recourse left for me." Hunter S. Thompson
segunda-feira, 30 de dezembro de 2013
The Butler. Muita pretensão, alguma técnica, nenhuma alma
Os últimos anos foram especialmente prolíficos em filmes sobre o racismo nos Estados Unidos. Coincidência ou não, Oprah Winfrey esteve envolvida, directa ou indirectamente, em três deles: produziu The Great Debaters (2007) e Precious (2009), e protagonizou agora este The Butler. Coincidência ou não, todos eles são filmes fracos e todos padecem do mesmo mal: o retrato das condições, das injustiças e dos abusos é melodramático em vez de ser genuíno, é forçado em vez de ser inspirador.
As melhores coisas costumam ser sempre as mais naturais. Foi assim o excepcional The Help (2011), uma franca obra-de-arte, que trata as mesmas temáticas transversais com pureza, jeito e com uma emotividade honesta, em relação à qual é impossível não empatizar. O problema de The Butler, tal como o dos seus 'antecessores' nesta órbita de Oprah, é esforçar-se demasiado para que nos compadeçamos dele. O filme é feito para causar dó e para reafirmar dolosamente algo com o qual já todos nos identificamos, e não é assim que as coisas devem funcionar. Isso torna-o plástico, exaustivo e sem ponta de carisma.
A história até era boa. Adaptada de uma reportagem jornalística por Danny Strong, vencedor do emmy do ano passado para melhor argumento em mini-série, faz uma recriação livre da vida de Eugene Allen, que escapou dos campos de algodão do Sul dos Estados Unidos na juventude, para vir a ser mordomo da Casa Branca durante uns extraordinários 34 anos, entre 1952 e 1986. O primeiro defeito do texto é estrutural. Sendo um relato demarcadamente cronológico, não houve o indispensável engenho para moderar o efeito disso. Assim, o filme não se descolou de um prolongado martelar de datas (2h15 deste registo é um excesso), numa reafirmação de pontos de vista óbvios, sem surpresas para o sustentarem, ficando-se, em vez, por momentos falsamente emotivos que só o diminuíram.
É esse, aliás, o seu pecado capital: a pretensão. The Butler especula sobremaneira com a comoção, com os dilemas, com a grandeza moral e com a sua mensagem, ao mesmo tempo que nunca nos consegue contagiar para esse efeito. É um filme executado a regra e esquadro para ser um clássico, como mandam os livros, mas cuja absoluta ausência de alma o deita por terra. Lee Daniels, que já realizara Precious, faz um trabalho a que realmente não se podem apontar falhas de monta, mas que se torna redundante, na medida em que é sempre incapaz de fazer fluir a acção, maquilhar a passagem do tempo e, grosso modo, de nos manter interessados.
Se The Butler teve uma boa ideia, essa foi Forest Whitaker. Não que o oscarizado texano faça aqui um dos papéis da vida, mas porque é, de facto, quase impossível que este não esteja à altura do que lhe pedem. Não acho que tivesse um texto ou uma caracterização boa, nem que tenha tido nenhuma grande cena, mas, no global, tem uma performance muito sólida, que plasma, ela sim, a grandeza e a dignidade que se pretendia para o filme. Individualmente, é tudo o que há, apesar dos muitos nomes. Oprah não é qualquer mais-valia para o filme e, à semelhança do compadrio das aparições especiais de Mariah Carrey ou de Lenny Kravitz, que já se verificara em Precious, personifica pouco mais do que uma distracção. The Butler é um filme competente a nível visual, que recorre a um elenco extenso e a uma temática cara. Não sendo um desastre, a forma como se sobrevaloriza acabou por prescrever o seu falhanço.
5.5/10
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2013. Os onze do ano
Neuer; Lahm, Thiago Silva, Ivanovic, Alaba; Ribéry, Yaya, Vidal, Ronaldo; Ibrahimovic, Lewandowski.
Weidenfeller, Zabaleta, Gundongan, Robben, Reus, Bale, Suárez.
Treinador: Jurgen Klopp.
quinta-feira, 26 de dezembro de 2013
Don Jon. Gordon-Levitt inventou (e vitimou) o filme mais ambicioso da temporada
Don Jon é um filme surpreendente. Despudorado, provocador, politicamente incorrecto e raro por isso, mesmo que não mantenha esse nível até ao fim. Narra a história de um tipo cru e musculado, povoador de discotecas e muito bem sucedido com o sexo oposto mas que, por ironia do destino, é profundamente viciado em pornografia, só dela conseguindo retirar verdadeiro prazer. O filme é visual e completamente descomplexado. Insiste abertamente na sua fórmula, é pungente e gere bem o choque que provoca.
É impreterível começar por dizer que Don Jon é uma invenção quase a solo de Joseph Gordon-Levitt que, além de protagonista, se estreou a escrever e a realizar. A nível interpretativo, Levitt sempre foi dos meus menos favoritos. Acho-o um dos nomes mais sobrevalorizados do mercado, acho que lhe falta engenho e que é um deserto de génio e de carisma. Não raras vezes, parece feito de plástico a nível expressivo... e Don Jon não me vem transformar a opinião nesse campo. Admito que a figura áspera e, quiçá, simplória de um tipo de New Jersey dedicado à família, aos amigos, ao ginásio e à sua igreja será dos papéis mais capazes da sua carreira, mas sinceramente só porque a medida era muito confortável e pedia-lhe pouco mais do que uma caricatura. Nas poucas ocasiões, aliás, em que se lhe reclama um pouco de nervo ou de emotividade, o resultado é o mesmo de sempre. Don Jon pode é passar aos livros como um portal para outra dimensão, onde já foram morar nomes como Ben Affleck: a chegada ao porto da Direcção/Argumentação.
O filme é uma notável peça de realizador, candidata a qualquer prémio de Melhor Estreia. É um trabalho de uma intensidade muito interessante, com um corte de planos rápido mas sempre ágil, que dá cadência ao filme e que nos vai puxando para ele. Gordon-Levitt também investe bastante em planos fechados, em repetições e numa não linearidade que confirma a sua lente como uma definitiva mais-valia, a rever assim que possível. Ao argumento original, do mesmo modo, só posso tirar o chapéu. Não porque tenha sido imaculado, mas porque demonstrou codícia, inteligência, gosto pelo risco e porque o soube concretizar. A primeira metade do filme é, de facto, brilhante, à medida que vamos conhecendo e tentando perceber a extrema peculiaridade do protagonista. Cada nuance, cada nova linha, é uma novidade que nos agarra à história, sendo o cume o segmento com Scarlett Johansson que, sinceramente, representa uma das pérolas do ano. Cada um achará das suas capacidades enquanto actriz o que quiser, mas num papel onde o elemento-chave é a fusão de sensualidade com a sua inenarrável beleza natural, Scarlett foi um cast de sonho. A personagem não lhe exige muito e é toda ela bem escrita, nos altos e nos baixos, mas é o seu sex appeal brutificante o que vem constituir uma experiência com vida própria dentro do filme, passível de quebrar qualquer queixo e de abstrair de tudo o que a rodeia. Uma chapa.
Estaríamos a falar, portanto, de um dos candidatos do ano, se o filme não tivesse feito o desfavor a si próprio de espalhar-se ao comprido no capítulo final. Admito que não era um trabalho fácil de acabar e não acho que a opção argumentativa seja totalmente imérita: não é surpreendente, mas é um desfecho com sentido, que talvez com mais bagagem e com outra capacidade interpretativa (Julianne Moore também não surge nos melhores dias) pudesse ter funcionado. Assim, a viagem de um tipo agreste na descoberta da sua própria intimidade acabou por render um fim ligeiro, lírico e pouco genuíno, ainda mais afectado pela prestação insuficiente de Levitt, que foi, no fim de contas, tanto o criador como o principal ponto fraco da sua obra. Don Jon terá de constar, seja como for, na lista dos que valeram a pena do ano que agora acaba.
7/10
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domingo, 22 de dezembro de 2013
The Spectacular Now. O pecado foi não ser ainda melhor
Mal vi o trailer foi amor à primeira vista. A correr por fora, as venturas e desventuras de um finalista de liceu à procura de si próprio insinuaram logo ali um indisfarçável síndrome de grandeza, uma distinção intrínseca que tornava The Spectacular Now num dos meus filmes mais esperados de fim de ano. A sensação que fica é agridoce. Este é, de facto, um filme especial em muitos aspectos, escrito com um talento pouco comum na caracterização da jornada e das personagens, e assente em prestações individuais tremendas. Ao mesmo tempo, não foi capaz de se concretizar com todo o génio que sustentou em muitos momentos, recorrendo a um par de balizas-comuns que acabaram por sabotar parte do seu alcance.
Começando pelo mais importante: Milles Teller e Shailene Woodley são magníficos. A ele não conhecia e é obrigatório reconhecer que Teller ganha o filme, num papel razoavelmente banalizado - o rebelde party animal de liceu - que ele soube agarrar com uma alma de todo o tamanho. É um tipo com uma empatia tremenda, um personagem muito bem escrito, que não é superficial nem forçado, e que ele potencia com uma das mais carismáticas prestações jovens de que me lembro. A sua relação paternalista com Shailene Woodley - não lhe chamaria química, mas antes a forma como se complementam, enaltecida por um excepcional triângulo amoroso - é outro evidente ponto alto. Ela, por sua vez, não é nenhuma surpresa. Há dois anos, já me apaixonara profundamente em The Descendants, ao ponto de ter defendido que mereceu o Óscar desse ano para melhor Secundária. Neste regresso ao grande ecrã, a lindíssima californiana de 22 anos volta a desarmar qualquer um com a sua doçura, num papel mais ingénuo, de quem tem poucas certezas, mas muitos sentimentos e sonhos ainda maiores. É um papel meninesco sem ser juvenil e vazio, e compõe o ramalhete romântico com uma pureza à prova de qualquer cinismo.
"Everybody just singin' and dancin', falling in love... I'm so happy. I mean, this night, this is our night. This is the youngest that we're ever gonna be. I love these people. I do, I love these people. I love you all! Come on. Dance with me. Come on."O ambiente é o outro tom do filme a que é difícil resistir. Aborda esse fim de Secundário, esse princípio de adultez, com um coração larguíssimo, com as poucas certezas e as muitas dúvidas, com os amigos mais próximos e as paixões mais distantes, tudo numa mescla genuína, cativante, com a qual é fácil identificar-se. As idiossincrasias de Sutter (Miles Teller) são esse retrato acabado dos 18 anos e de todas as possibilidades do mundo. Ele é um gigante e, ao mesmo tempo, um peão, um símbolo para fora que é muito mal resolvido por dentro. The Spectacular Now brilha ao navegar entre a sua história e a componente envolvente, na vertigem dessa era em que não se sabe nada mas onde ainda se pode tudo.
O calcanhar de Aquiles surge no momento em que o filme tem de concretizar as suas 'grandes questões', nomeadamente a partir do drama do pai ausente. Ao forçar uma mensagem e uma moral que não foi capaz de construir com um engenho à sua altura, este não evitou banalizar-se num lirismo redundante e desnecessário, que lhe castrou uma parte importante da aura. Adaptado por Scott Neustadter e Michael H. Weber, argumentistas de 500 days of Summer, o desenlace tem uma componente auto-destrutiva brilhante, mas padece do facto de ter uma conclusão muito by the book, quando dificilmente elas são assim. Com várias cenas bonitas, também acho que a realização de James Ponsoldt, na sua terceira e mais significativa longa-metragem, podia ter deixado outra marca, num registo que oferecia todas as condições para isso.
The Spectacular Now é um filme de que se gosta naturalmente, que acredito vá ser bastante consensual. Só tenho pena que, depois das provas de cor, coração e carisma, lhe tenha faltado um quê de génio para fugir a lugares-comuns, porque era isso que o eternizaria noutro patamar.
7/10
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sexta-feira, 20 de dezembro de 2013
Captain Phillips. O regresso de um gigante
Fazer suspense com algo que já aconteceu na vida real será das coisas mais difíceis a realizar de forma fidedigna em cinema. Num argumento original, pode-se sempre inventar mais um compasso, mais uma nuance. Num 'verdadeiro' as cartas já estão todas na mesa. Se o primeiro reclama criatividade, o segundo só pode sobreviver com mestria. Captain Phillips é a prova de que, não raras vezes, a realidade pode-nos afectar ainda melhor do que a ficção.
O resultado final não é exactamente uma surpresa, ou o responsável não se tratasse de Paul Greengrass, que há sete anos já deslumbrara num registo parecido, então com United 93 (2006), a história do único voo sequestrado no 11 de Setembro que não atingiu um alvo civil. A mesma agressão emocional e o mesmo terror psicológico voltaram a ser filmados aqui com um nível elevadíssimo. Como o provou uma vez mais, o talento de Greengrass para dirigir histórias da vida real é ímpar. A forma como nunca se precipita nem é plástico, como consegue induzir um paz falsa, que conforta mesmo que saibamos que não vai durar, quais cuidados terminais, como conduz a tensão a conta-gotas, a tentar remediá-la, antes de finalmente a abater sobre as nossas cabeças, foi, de novo, todo um arranjo verdadeiramente brilhante.
Captain Phillips é um filme que parece 'normal' durante parte substancial do tempo, que não parece perigoso, porque nunca nos ameaça o suficiente. Temos quase a certeza com o que contar e sabemos que não pode ser muito maior do que isso. O facto do zénite da acção serem 4 escassos piratas numa lancha a assumirem mando de uma tripulação inteira num cargueiro mercante ilustra exactamente isso. Parece tudo relativo... e, no entanto, sem mudar nenhum factor de maior, o esmagamento final é de uma violência excepcional. Muito bom argumento adaptado de Billy Ray, ele que, além de Hunger Games, assinou o meu muito estimado State of Play (2009).
Na mesma ilusão perversiva, Tom Hanks insinua ir ocupar um papel meramente glorificado. Como se se limitasse a ir dar a cara pela chapa, ser posto à prova e subsistir com a coragem dos heróis. Mesmo numa fase já avançada continuava a estar amarrado a esses serviços mínimos. Dizem, todavia, que os melhores aparecem nos momentos decisivos; os últimos 20 minutos e, em particular, a sua incrível cena final não foram, portanto, menos do que o regresso formal de um dos maiores monstros de sempre. Diria que é impossível ficar emocionalmente indiferente à majestade da sua prestação. Não tem nada a ver com a execução técnica mas, antes, com uma autêntica humanidade em estado puro, tão incontida e vulnerável, tão 'real' que sobra muito pouco a dizer. Ata-nos a garganta e faz-nos experenciar uma compaixão integralmente genuína. Coisa, como é bom de ver, só ao alcance de uns quantos predestinados. Por fim, ainda vale a pena reconhecer o carácter dos piratas, que eram facilmente banalizáveis e que, em vez de serem parentes irrelevantes, vêm a contribuir de forma decisiva para o poder da acção.
Talvez Captain Phillips não seja um filme com que nos identifiquemos por instinto, porque tem características que o tornam numa peça particular, nomeadamente a paciência necessária para que o fim funcione. A sua concretização, no entanto, é inatacável e avassaladora, num primor de direcção e de extremo talento individual que os Globos de Ouro já reconheceram (nomeações Drama, Actor, Secundário e Realizador).
8/10
terça-feira, 17 de dezembro de 2013
Homeland, season 3. O fim de uma jornada memorável
Escrevi aqui vezes suficientes a minha admiração por Homeland. Uma demonstração de força já no seu primeiro ano, foi na reentrada que se tornou numa das minhas séries favoritas de sempre. A 2ª temporada foi um dos mais excepcionais eventos televisivos a que já assisti, a usufruir daquela necessidade compulsiva de consumo imediato só reservada às melhores das melhores. Teve uma escrita irrealisticamente realista, com descargas nervosas tão à flor de pele que justificariam calmantes para o estonteamento de episódio sobre episódio, com um carácter emocional e uma tensão pasmantes e, acima de tudo, com uma excelência interpretativa que foi para lá de quase tudo o que já vi, legado eterno de dois monstros chamados Claire Danes e Damian Lewis. Os prémios, que como saberá qualquer pessoa de bem, são sempre uma nota de rodapé a qualquer questão de culto, renderam, mesmo assim, cinco globos de ouro e oito emmys. Registos escassos para a altura do que se fez.
Sobretudo nas séries maiores, porém, se há coisa inevitável é aquela sensação de perda antecipada. Aquelas vertigens de quem está a jogar muito alto, tão alto, que é quase impossível não estar sempre à espera de cair. Não vou dizer que a 3ª temporada representou uma cisão dramática entre um nível estrelar e uma qualquer vulgaridade, porque tal não seria verdade. É, no entanto, indiscutível que esta marcou a descolagem com um referencial que, uma vez consumada, raramente tem retorno.
Assim, a primeira metade da season 3 foi uma envergonhada perda de tempo, fomentando todas as piores expectativas, tão evidente que se tornou o bloqueio criativo e a incapacidade para voltar a agilizar a história, e dar-lhe o tom quase toxicodependente que sempre a caracterizou. Foram dois meses de acalmia oca, cheia de pontas soltas e de várias apostas discutíveis, que já só nos levava a esperar que houvesse remédio mais por fé do que por convicção.
Nos últimos 4 episódios, honra lhe seja feita, a série respondeu. Teve rasgo, adrenalina, respirou e contagiou como nos velhos tempos. O grande legado da temporada é ter investido no quadrante emocional, na relação pura, mesmo que espectacularmente distante, entre Carrie e Brody, e com ela ter vingado. A sua grande sequência surge no season finale, quando estão os dois numa cabana. É gutural, arrepiante, comovente. Os dois ali amassados, batidos, depois de terem arriscado e de terem perdido quase tudo, ali juntos, quebrados, produtos com defeito, como se diz, mas juntos. Isso e, devo acrescentar, algo mais transversal à temporada, que é a genuinidade bestial e indescritível com que Claire Danes sempre agiu perante o romance, da comoção nos olhos aos nós na garganta e aos sorrisos surdos, coisas, enfim, de um nível interpretativo extraterrestre e que, mesmo numa temporada em défice, só no entendimento de calhaus com olhos a podem ter deixado fora da corrida ao Globo de Ouro.
O jogo de cintura final não foi, contudo, suficiente para resgatar a série, porque o desfecho soçobrou aos piores receios. No último fôlego foi impossível mascarar a falta de um desígnio. Diz-se que para um barco sem rumo não há ventos favoráveis, e Homeland navegou sem bússola assim que teve de zarpar do porto paradisíaco onde estava acostada. Nem as brisas emanadas do talento excepcional de todos os seus envolvidos (grande temporada de Mandy Patinkin, que, sem nunca ter chegado aos prémios, merecia ter sido dignificado com uma última nomeação) acabaram por soprar na direcção certa. Como quando se acabam os trunfos e já não se acredita no próprio bluff, a série decidiu que a sua única saída era apostar as fichas todas e confiar que o choque tivesse valor por si próprio. O que lhe sobrou foi um grande nada. O season finale precipitou-se de uma forma desgarrada, incontinente e ligeira (incompreensível o capítulo dos "4 meses depois"), e foi desperdiçado de uma maneira completamente oposta ao cerebral e irresistível terror psicológico e de suspense que sempre foi tão caro a Homeland e que a tornou numa peça de arte tão transtornante quanto viciante.
No próximo ano dar-se-á uma quase refundação da série, que será obviamente vista, porque isso é o mínimo para o tipo de crédito que esta fez por merecer. Mas, se muitas vezes é bom mudar de caminho, desta reservo-me ao direito de fazer o luto. Venha o que vier, o Homeland que "acabou" no Domingo foi da estirpe que dificilmente pode ter duas vidas.
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Villas-Boas. A vida depois de Príncipe Perfeito
O bom senso aconselha a que se eduquem sempre as expectativas. No futebol, como no resto da vida, muitos podem ser grandes mas só poucos o vêm efectivamente a ser. Acabar um Mourinho não é mais do que uma hipótese infinitesimal, se comparada com o oposto. Mesmo assim, mesmo com toda a prudência, às vezes é impossível resistir à tentação. Villas-Boas foi, desde o berço, essa história encantada. Muito antes de ter chegado à cadeira de sonho, já a Providência se dedicara a escrever o argumento da sua carreira. Desde o dia em que, miúdo cheio de si, mandou uma carta letrada a um velho vizinho chamado Bobby Robson, ao ponto de por ele vir a ser tutorado, até ao cargo de observador-chave do maior ícone dos bancos do novo século, Villas-Boas teceu todo o seu percurso a filigrana. Quando chegou a técnico do Porto, com nome e barba de aristocrata, era isso tudo e ainda mais um bocado: era portista de corpo e alma. Como num conto de fadas.
Geralmente seria depois desta esquina que espreitaria o descalabro. O momento em que o herói sucumbiria às suas circunstâncias, para satisfação do cinismo do mundo. A maioria dos atentos, boa quota-parte de portistas, terá desconfiado disso mesmo. Afinal de contas, quando chegou ao Dragão, Villas-Boas era muito mais o protegido de Robson e Mourinho, do que o treinador que estivera longe de deslumbrar em meio ano de Académica. O resto toda a gente sabe.
O bom senso aconselha a que se eduquem as expectativas, mas há expectativas que pervertem o melhor dos sensos. Com uns inacreditáveis 33 anos, o puto-maravilha foi campeão sem derrotas. Ganhou Taça e Supertaça só para as formalidades, dedicando-se, então, à glorificação europeia que, a meio do caminho, já parecia inevitável. A história não estaria completa sem que o maior rival, claro, tivesse sido devorado, no auge da sua regeneração. Ou sem que ele tivesse apaixonado qualquer conferência de imprensa ou seduzido o mais tenaz dos seus adversários. As dúvidas havidas dissiparam-se como numa aparição. O novo messias tinha nascido. Esse Porto foi perfeito. Como a sua história.
Não sei se hoje Villas-Boas estará arrependido do caminho fracturante por onde seguiu nesse Verão, quando veio a esfacelar o coração da sua própria gente. A razão diz que sair daquele Porto já feito, a palpitar pela relva da Champions, foi uma falta de visão; honestamente, só com hipocrisia poderia censurar quem aceita um daqueles convites que só aparece uma vez na vida. A nível futebolístico, a sua passagem pelo Chelsea será sempre injustamente subvalorizada. Villas-Boas escolheu bem os jogadores e foi capaz de enunciar em campo a sua ideia de jogo durante um tempo. Escreveu, mesmo que por linhas tortas, a génese de um Campeão Europeu. Falhou, de facto, porque era preciso muito mais do que a bola para que estivesse preparado.
Muito longe de uma estrutura com tanto profissionalismo quanto tradição, o balneário do Chelsea era um selva onde só se sobrevive com calejamento e com tacto. Villas-Boas entendeu tudo mal. Foi contratado para fazer uma revolução, mas nunca percebeu que elas também se fazem com cravos. Não percebeu, sobretudo, que os seus gigantes não tinham pés de barro e que ainda não era a sua hora, transformando os maiores trunfos que poderia ter nos seus piores inimigos. A profética frase "tenho a confiança do presidente, não preciso dos jogadores" é daquelas que o perseguirá por toda a vida. Ele acabou na rua, eles acabaram campeões da Europa.
O tombo foi proporcional ao percurso imaculado. Por mérito seu, tinha sido tudo "fácil" até então; a partir daí, para o bem ou para o mal, as suas pegadas descolaram-se definitivamente das da sombra maestra que sempre o perseguiu. O primeiro fracasso é sempre quanto baste para pôr tudo em causa. O que viesse depois valeria, portanto, a dobrar. Sinceramente, não esperava por aquela imediata segunda vida na zona rica da Premier League. O Tottenham, o mais caro dos não-candidatos, pareceu a ressaca ideal. Jogadores, dinheiro e menos pressão. Um posto para superar lugares-comuns e fazer magia.
Houve um dia, pelo menos um, em que o céu voltou a estar na ponta dos dedos: o da vitória em Old Trafford. Villas-Boas assaltava o maior de todos os castelos e um galês intergaláctico entregava oficialmente a candidatura a maior do ano. Pareceu uma daquelas vitórias que fazem campanhas inteiras. No fim, porém, o 5º lugar soube a muito pouco. A Champions ficou pendurada por um tortuoso ponto, é verdade, mas a crueza das contas explicou que ficar atrás dos quatro do costume era o que se teria feito em piloto automático. 13/14 era o ano de fazer ou morrer. Sem a estrela-mãe mas com 120 milhões para gastar.
De certo ninguém esperaria que, por esta altura, os Spurs andassem a ofuscar toda a sua engalanada concorrência. Villas-Boas sai, aliás, com a melhor percentagem de vitórias da história do clube e à frente do próprio campeão em título. Às vezes, contudo, os números não são mais do que isso. E só quem não o tenha visto pode achar que este Tottenham, onde se derramou todo e qualquer centavo da factura de Bale, não é o pior de todos os projectos futebolísticos de Villas-Boas. Era preciso tempo, sim. Mas tempo é uma comodidade aversa a quem não a mereceu, gastou demais e mudou para pior.
O Tottenham joga pouco, marca menos do que isso e pareceu, quase sempre, pouco mais do que uma equipa errante em campo, desiludida em cada toque. A brutalidade das humilhações ofertadas por City e Liverpool foram só os punhos na ferida. Mais do que individual ou colectivo, o que saltou à vista foi o défice humano. A falta de disponibilidade mental de um plantel de luxo para estar em campo, para querer sofrer, para acreditar no que se está a fazer. Se atentarmos a reacções como as de Adebayor ou Ekoto é ainda mais cristalino. Villas-Boas não perdeu no campo, perdeu na cabine. Outra vez.
André subiu rápido demais; estará destinado a cair sem rede? Estará acabado? Parece-me evidente que não. Julgamentos sumários são absurdos, ainda mais para quem tem 37 anos e, acima de tudo, porque uma centelha de génio não é coisa que se compre no supermercado ou que jamais apareça por acaso. A carreira não esperará por ele para sempre, é certo, e talvez Villas-Boas não seja o novo Especial, mas tem realmente na sua aura algo que é fora do comum, e que acredito que voltará a sobressair mais cedo do que tarde. Para ele, mais importante do que confiar nisso, porém, é perceber que há outras coisas que, pelo contrário, não tem e que dificilmente poderá vir a ter. Seja qual for o seu próximo balneário, Villas-Boas terá de encará-lo com a mais cândida das humildades. Não com medo, porque assim perdê-lo-ia igualmente, mas com uma genuína e integral transparência. A saber abdicar do pedestal, gerir egos e ser vulnerável. Se não a contagiar e a conseguir que 'morram' por ele, a ganhar o respeito dos jogadores, querendo-os como iguais.
Um treinador ganha jogos, um líder costuma ganhar títulos. Acontece que ser líder não se aprende. Ou se nasce ou não se nasce. Villas-Boas, explicou a experiência, não nasceu. De hoje em diante, a sua carreira dependerá da capacidade para viver à margem do tipo-ideal que quis ser durante tanto tempo, da sua lucidez para admitir as próprias insuficiências e para redefinir a sua própria maneira de estar. Porque mesmo se não for perfeito, continua a ser treinador que chegue e sobre para dar a volta por cima. Não sendo esse líder nato, o seu futuro dependerá de um princípio estruturante a qualquer Arte da Guerra: aprender a fazer aliados, e a comandá-los lado a lado, em vez de os hostilizar como se pudesse ganhar sozinho.
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quarta-feira, 11 de dezembro de 2013
O problema não és tu, sou eu
O Benfica acabou a Liga dos Campeões a fazer frente a uma das melhores equipas europeias da actualidade, tal como no ano passado. A última imagem é a que fica e, dê por onde der, encher o Camp Nou ou vergar um dos clubes da moda é coisa que qualquer adepto está sempre condenado a estimar e a ficar mais ou menos modestamente orgulhoso. A verdade, no entanto, costuma ser sempre mais agreste. Neste caso diz que, agora como então, PSG e Barcelona usaram suplentes, o que não vale a pena branquear. Vários jogadores de classe mundial, claro que sim, mas espinhas de reservas em equipas com a comodidade de uma qualificação já garantida. Até parto por princípio que é ingrato menosprezar qualquer vitória nos Campeões; facto é que no fim, agora como então, o Benfica também não soube fazer mais do que a fase de grupos.
Jesus é respeitado por ter devolvido a dimensão europeia ao clube e esse é um reconhecimento que ninguém lhe poderá tirar. Em cinco anos, cumpriu a proeza de ser o treinador benfiquista com mais vitórias continentais. Fez sempre o mínimo de uns quartos-de-final e devolveu o emblema a uma final europeia, mais de duas décadas depois. Tem de falar por ele... e, mesmo assim, é impossível relevar que, nos últimos quatro anos, o Benfica tenha saído três vezes do maior dos palcos pela porta dos fundos. Pior do que isso, eliminado por Schalke, Lyon e, particularmente, por Celtic e Olympiakos. Já aqui elogiei Jorge Jesus várias vezes, por bem mais do que a sua aura europeia. Ao ano cinco, porém, é de palmatória constatar que uns oitavos de Champions dão mais prestígio (e dinheiro) do que quase tudo na 'outra' competição. Para qualquer equipa que invista o que o Benfica investe e que tenha os recursos humanos que o Benfica tem (e parte deles apenas existem por mérito directo do treinador) só é possível querer jogar numa e em mais nenhuma prova. Ao ano cinco, e por injusto que isso possa soar, sair de cabeça erguida contra os suplentes dos maiores, soçobrar perante equipas grosseiramente alcançáveis e fazer boa figura na competição da qual ninguém quer saber, é pouco e não é suficiente.
Na antecâmara da fase decisiva do ano passado, escrevi que o Benfica tinha um dos 20 melhores treinadores da Europa e que devia considerar isso profundamente, caso a tripleta de sonho se tornasse num pesadelo. O pesadelo, no entanto, foi muito maior do que alguma vez pude conceber, eu ou um qualquer benfiquista. Ver a forma errante como a equipa tem perpassado pela nova época como que confirma que há mortes das quais não se ressuscita. No pontapé paranormal de Kelvin e na cabeçada assombrada de Ivanovic, mais do que os troféus, jazeu o legado de Jesus no Benfica. Ao qual a História fará jus, acredito, mas de cuja travessia no deserto já não parece poder haver regresso.
Jesus é o treinador de maior longevidade da liga. Não perdeu nenhum titular e desfruta do melhor plantel do país (mesmo que esse tenha sido estupidamente planeado). Não é preciso quantificar o vazio cru que é o onze aparecer desde o primeiro dia afligido de todas as mortandades do mundo, perdido ao sabor da fortuna e incapaz de produzir um décimo do futebol de veludo de outros tempos. O campeonato está para qualquer coisa e, honra lhe seja feita, o histórico prova que a Liga Europa é uma taça para escalar. Nenhum benfiquista deixará de suspeitar, no entanto, que perante a vitalidade do Sporting e a estrutura do Porto, há mais uma pequena tragédia a fazer-lhe uma espera no fim do caminho.
Ironicamente por mérito do próprio Jesus, estar na luta e perder de cabeça erguida é o tipo de crise existencial que, ao fim de tantos anos de grandes expectativas e de maiores frustrações, já não pode voltar a encher barrigas. Woody Allen escreveu que as relações são como os tubarões: ou andam constantemente para a frente ou morrem. As carreiras também são assim. Hoje, Jesus é o criador na iminência de ser engolido pela excelência da sua própria criação, porque não a conseguiu acompanhar, porque agora é ele quem atrofia o seu crescimento. O seu Benfica é aquele que se perdeu no caminho e que ficou à margem do que poderia ter sido. É o Benfica que já não chega, tal como Jesus já não chega ao Benfica.
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