"I have no choice but to direct my energies toward the acquisiton of fame and fortune. Frankly, I have no taste for either poverty or honest labor, so writing is the only recourse left for me." Hunter S. Thompson
terça-feira, 17 de dezembro de 2013
Villas-Boas. A vida depois de Príncipe Perfeito
O bom senso aconselha a que se eduquem sempre as expectativas. No futebol, como no resto da vida, muitos podem ser grandes mas só poucos o vêm efectivamente a ser. Acabar um Mourinho não é mais do que uma hipótese infinitesimal, se comparada com o oposto. Mesmo assim, mesmo com toda a prudência, às vezes é impossível resistir à tentação. Villas-Boas foi, desde o berço, essa história encantada. Muito antes de ter chegado à cadeira de sonho, já a Providência se dedicara a escrever o argumento da sua carreira. Desde o dia em que, miúdo cheio de si, mandou uma carta letrada a um velho vizinho chamado Bobby Robson, ao ponto de por ele vir a ser tutorado, até ao cargo de observador-chave do maior ícone dos bancos do novo século, Villas-Boas teceu todo o seu percurso a filigrana. Quando chegou a técnico do Porto, com nome e barba de aristocrata, era isso tudo e ainda mais um bocado: era portista de corpo e alma. Como num conto de fadas.
Geralmente seria depois desta esquina que espreitaria o descalabro. O momento em que o herói sucumbiria às suas circunstâncias, para satisfação do cinismo do mundo. A maioria dos atentos, boa quota-parte de portistas, terá desconfiado disso mesmo. Afinal de contas, quando chegou ao Dragão, Villas-Boas era muito mais o protegido de Robson e Mourinho, do que o treinador que estivera longe de deslumbrar em meio ano de Académica. O resto toda a gente sabe.
O bom senso aconselha a que se eduquem as expectativas, mas há expectativas que pervertem o melhor dos sensos. Com uns inacreditáveis 33 anos, o puto-maravilha foi campeão sem derrotas. Ganhou Taça e Supertaça só para as formalidades, dedicando-se, então, à glorificação europeia que, a meio do caminho, já parecia inevitável. A história não estaria completa sem que o maior rival, claro, tivesse sido devorado, no auge da sua regeneração. Ou sem que ele tivesse apaixonado qualquer conferência de imprensa ou seduzido o mais tenaz dos seus adversários. As dúvidas havidas dissiparam-se como numa aparição. O novo messias tinha nascido. Esse Porto foi perfeito. Como a sua história.
Não sei se hoje Villas-Boas estará arrependido do caminho fracturante por onde seguiu nesse Verão, quando veio a esfacelar o coração da sua própria gente. A razão diz que sair daquele Porto já feito, a palpitar pela relva da Champions, foi uma falta de visão; honestamente, só com hipocrisia poderia censurar quem aceita um daqueles convites que só aparece uma vez na vida. A nível futebolístico, a sua passagem pelo Chelsea será sempre injustamente subvalorizada. Villas-Boas escolheu bem os jogadores e foi capaz de enunciar em campo a sua ideia de jogo durante um tempo. Escreveu, mesmo que por linhas tortas, a génese de um Campeão Europeu. Falhou, de facto, porque era preciso muito mais do que a bola para que estivesse preparado.
Muito longe de uma estrutura com tanto profissionalismo quanto tradição, o balneário do Chelsea era um selva onde só se sobrevive com calejamento e com tacto. Villas-Boas entendeu tudo mal. Foi contratado para fazer uma revolução, mas nunca percebeu que elas também se fazem com cravos. Não percebeu, sobretudo, que os seus gigantes não tinham pés de barro e que ainda não era a sua hora, transformando os maiores trunfos que poderia ter nos seus piores inimigos. A profética frase "tenho a confiança do presidente, não preciso dos jogadores" é daquelas que o perseguirá por toda a vida. Ele acabou na rua, eles acabaram campeões da Europa.
O tombo foi proporcional ao percurso imaculado. Por mérito seu, tinha sido tudo "fácil" até então; a partir daí, para o bem ou para o mal, as suas pegadas descolaram-se definitivamente das da sombra maestra que sempre o perseguiu. O primeiro fracasso é sempre quanto baste para pôr tudo em causa. O que viesse depois valeria, portanto, a dobrar. Sinceramente, não esperava por aquela imediata segunda vida na zona rica da Premier League. O Tottenham, o mais caro dos não-candidatos, pareceu a ressaca ideal. Jogadores, dinheiro e menos pressão. Um posto para superar lugares-comuns e fazer magia.
Houve um dia, pelo menos um, em que o céu voltou a estar na ponta dos dedos: o da vitória em Old Trafford. Villas-Boas assaltava o maior de todos os castelos e um galês intergaláctico entregava oficialmente a candidatura a maior do ano. Pareceu uma daquelas vitórias que fazem campanhas inteiras. No fim, porém, o 5º lugar soube a muito pouco. A Champions ficou pendurada por um tortuoso ponto, é verdade, mas a crueza das contas explicou que ficar atrás dos quatro do costume era o que se teria feito em piloto automático. 13/14 era o ano de fazer ou morrer. Sem a estrela-mãe mas com 120 milhões para gastar.
De certo ninguém esperaria que, por esta altura, os Spurs andassem a ofuscar toda a sua engalanada concorrência. Villas-Boas sai, aliás, com a melhor percentagem de vitórias da história do clube e à frente do próprio campeão em título. Às vezes, contudo, os números não são mais do que isso. E só quem não o tenha visto pode achar que este Tottenham, onde se derramou todo e qualquer centavo da factura de Bale, não é o pior de todos os projectos futebolísticos de Villas-Boas. Era preciso tempo, sim. Mas tempo é uma comodidade aversa a quem não a mereceu, gastou demais e mudou para pior.
O Tottenham joga pouco, marca menos do que isso e pareceu, quase sempre, pouco mais do que uma equipa errante em campo, desiludida em cada toque. A brutalidade das humilhações ofertadas por City e Liverpool foram só os punhos na ferida. Mais do que individual ou colectivo, o que saltou à vista foi o défice humano. A falta de disponibilidade mental de um plantel de luxo para estar em campo, para querer sofrer, para acreditar no que se está a fazer. Se atentarmos a reacções como as de Adebayor ou Ekoto é ainda mais cristalino. Villas-Boas não perdeu no campo, perdeu na cabine. Outra vez.
André subiu rápido demais; estará destinado a cair sem rede? Estará acabado? Parece-me evidente que não. Julgamentos sumários são absurdos, ainda mais para quem tem 37 anos e, acima de tudo, porque uma centelha de génio não é coisa que se compre no supermercado ou que jamais apareça por acaso. A carreira não esperará por ele para sempre, é certo, e talvez Villas-Boas não seja o novo Especial, mas tem realmente na sua aura algo que é fora do comum, e que acredito que voltará a sobressair mais cedo do que tarde. Para ele, mais importante do que confiar nisso, porém, é perceber que há outras coisas que, pelo contrário, não tem e que dificilmente poderá vir a ter. Seja qual for o seu próximo balneário, Villas-Boas terá de encará-lo com a mais cândida das humildades. Não com medo, porque assim perdê-lo-ia igualmente, mas com uma genuína e integral transparência. A saber abdicar do pedestal, gerir egos e ser vulnerável. Se não a contagiar e a conseguir que 'morram' por ele, a ganhar o respeito dos jogadores, querendo-os como iguais.
Um treinador ganha jogos, um líder costuma ganhar títulos. Acontece que ser líder não se aprende. Ou se nasce ou não se nasce. Villas-Boas, explicou a experiência, não nasceu. De hoje em diante, a sua carreira dependerá da capacidade para viver à margem do tipo-ideal que quis ser durante tanto tempo, da sua lucidez para admitir as próprias insuficiências e para redefinir a sua própria maneira de estar. Porque mesmo se não for perfeito, continua a ser treinador que chegue e sobre para dar a volta por cima. Não sendo esse líder nato, o seu futuro dependerá de um princípio estruturante a qualquer Arte da Guerra: aprender a fazer aliados, e a comandá-los lado a lado, em vez de os hostilizar como se pudesse ganhar sozinho.
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