terça-feira, 28 de janeiro de 2014

The Hunger Games: Catching Fire. A confirmação


Em 2012, o antecipado capítulo inicial da saga de Suzanne Collins surpreendeu muito boa gente. Bem realizado e bem construído, com um cast inteligente e a mais brilhante escolha de lead possível, The Hunger Games sugeriu, desde logo, que vinha para ficar e para levar a sério. Não era só um blockbuster bacoco, um Twilight desta vida. Demonstrou ser um filme com densidade carismática e com uma história alicerçada num ideário maior que, apesar de ser juvenil, e de explorar assim o seu romance, fazia crer, sem esforço, que era muito mais relevante do que isso. Catching Fire veio nivelar essa ideia por cima e confirmou definitivamente a franchise como a mais significativa do mercado actual.

Tecnicamente, a execução continua a ser irrepreensível. Efeitos generosos, muita agilidade na acção, boa banda sonora. Mais do que isso, tendo em conta que tanto daquilo é criado digitalmente, acaba por ser admirável a sua humanidade e a fiabilidade dos grandes planos, da modéstia doce de um bosque ao pôr-do-sol aos anfiteatros da Capital, dos cenários pós-apocalípticos da Resistência a uma festa palaciana digna de um Gatsby. Era fácil que o filme passasse por artificial ou excessivamente plástico e não é isso que acontece, pelo equilíbrio e pelo bom gosto a doseá-lo. Mérito de Francis Lawrence, já habituado a filmar cenários distópicos (I am Legend), e que me parece ter superado um trabalho que Gary Ross já tinha feito muito competente na estreia.

O traço mais evidente da maioridade do filme a todos os níveis, do seu crescimento transversal, é, no entanto, a adaptação de argumento. É da história original que tenho medo e na qual considero poder estar a sua mais inevitável fraqueza - falarei disso abaixo - mas, em todo o resto, o input da dupla de peso contratada - ambos vencedores de Óscar, Simon Beaufoy (Slumdog Millionaire) e Michael Arndt (Little Miss Sunshine) - foi impactante. Catching Fire, mesmo sujeitando-se a uma quase repetição da narrativa principal, é um filme mais sério e mais poderoso do que o seu antecessor em quase tudo. É mais desconfortável, mais triste, mais perigoso. Mas igualmente mais real, mais espontâneo, eminentemente mais cativante. O medo e o segredo prosperam, a rebelião insinua-se e tudo parece mais à flor da pele, mais vivido, mais imediato. Isso nota-se, inclusive, nas peculiaridades do triângulo amoroso, agora muito mais interessante do que no início.

É curioso que a fórmula-base não tenha nada de novo. Aliás, o registo do herói icónico que se vai prestar a derrubar um Império do mal deve ser o mais batido em toda a história das grandes sagas. Sucede que as coisas são, de facto, muito bem feitas. É uma fórmula comprovadamente de sucesso mas que sabe encontrar o seu espaço, ser crível e cativante, e levar-nos consigo. O filme é muito simbólico e é difícil resistir a isso. O pin do tordo ostensivamente elevado nos meandros da clandestinidade, o léxico próprio (The odds are never in our favour), toda essa carga contextual, apela-nos, de facto, ao instinto de sobrevivência, de luta e de Revolução que já nos vem entranhado na genética, e vicia-nos. A cena em que, ainda na primeira meia-hora de filme, um velho silva o tordo no meio do silêncio da multidão, enquanto faz a saudação de três dedos, é monumental e arrepiante, e cristaliza numa sequência perfeita o tom de tudo o resto.

Depois, claro que ter Jennifer Lawrence, se não resolve os problemas todos, pelo menos ajuda bastante. Aos 23 anos, encontra-mo-la no topo do mundo - primeira lead feminina a reclamar a coroa da box-office em 40 anos e, ao mesmo tempo, candidata de peso a um segundo Óscar consecutivo -, e ninguém que a veja em cena pode deixar de perceber porquê. Lawrence é uma predestinada, que parece já ter nascido a fazer aquilo. A forma como vive qualquer cena da mesma forma, de um blockbuster a um filme de autor, como parece sempre na iminência de perder o controlo, com o coração na boca, até à facilidade para se vulnerabilizar e, logo depois, superar, é todo um manual que se escreve sozinho. Neste momento, já a tornou num ícone automático e quem a escalou devia estar a agradecer ao céu todos os dias.

De qualquer forma, e ao contrário do que é regra nestes filmes, todo o cast esteve a um nível extremamente bom. Saliento, em particular, Josh Hutcherson, num papel suave, que não costumo apreciar, mas a que ele empresta uma generosidade e um compromisso desarmantes. Beneficia-o, igualmente, o termo de comparação com Liam Hemsworth, de longe, o elemento mais fraco de todos. Woody Harrelson está ainda melhor do que no primeiro, e confirma-se como estruturante, sendo essa tendência acompanhada por Donald Sutherland e Lenny Kravitz. O gigante Philip Seymour Hoffman foi, evidentemente, uma grande ideia, e ainda merecem referência Jena Malone e Sam Claflin, secundários de grande nível que vieram trazer química grupal à história e que aumentaram ainda mais o alcance que ela pode vir a assumir.

Para o fim, fica o calcanhar de Aquiles: The Hunger Games continua a ser completamente incapaz de fazer um sacrifício ou de tomar uma única decisão verdadeiramente difícil. O filme especula com muita violência e com muito tormento, mas depois não consegue concretizar seja o que for nesse aspecto. O cúmulo é, como se pode imaginar, a competição propriamente dita, pela qual os protagonistas passam com uma leveza permanente e um lirismo desconcertante. Fazerem religiosamente a coisa certa e passarem sempre incólumes, sem nada que os agrida de forma irremediável, é algo que fere o filme de uma descredibilização que não é passível de contornar. Não li os livros e, portanto, estou a falar completamente no escuro. Mas estas palavras de George Martin continuam a ser doutrinais. Se, no seu último capítulo, a história não for capaz de provar a coragem para tomar decisões difíceis, Os Jogos da Fome ficarão sempre à margem do patamar notável onde teriam definitivamente condições para chegar.

7.5/10

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