domingo, 20 de dezembro de 2015

Star Wars, episode VII. A Força esteve connosco


Como é que se encapsula 40 anos de magia num regresso?

É complicado saber por onde começar quando está em causa o filme mais esperado da década. Com a Guerra das Estrelas foi sempre assim: a vertigem do próximo capítulo, do próximo fim, do próximo regresso. Em cada um desses dias, em cada um desses anos, foram eles o filme mais esperado do mundo. A nossa História cultural contemporânea teve a sorte de assistir a sagas tão monumentais como as melhores de todos os tempos, que inundaram de fascínio cada bocado da nossa imaginação colectiva e desenharam muito daquilo que sonhamos hoje; nenhuma outra, contudo, se poderá gabar de tamanha plenitude e transversalidade e, sobretudo, de tamanha vitória sobre o teste do tempo. A Guerra das Estrelas é a saga mais aceite e mais comercial, a mais acarinhada e a mais antiga. É a língua e o espelho não de uma geração, mas de todo um entendimento do que é a nossa sétima arte comum, imperecível, una e majestaticamente fascinante.


A 25 de Maio de 1977, o meu pai tinha 17 anos. Esta devia ser a história dele; na quinta-feira à noite, contudo, sentado na estreia mundial, com literalmente milhões e milhões de pessoas ao mesmo tempo, não havia ali nada que me pudessem tirar. O cinema será sempre o primado das grandes histórias, mas o cinema não seria cinema sem a experiência. Sem aquela mobilização, sem a propensão de ir viver a energia que vai muito, muito além de tudo o que se expele na tela. Ter passado as últimas semanas na expectativa, os últimos dias a namorar trailers e artigos, o dia da estreia com a obsessão da recompensa, reservar os bilhetes, seguir em romaria e depois sorver reverentemente, quase grato de respeito, cena sobre cena, deslumbrado com os pequenos regressos a casa, com aquele reconhecimento tácito que nos diz que somos todos parte do mesmo, é algo de genuinamente maravilhoso, que qualquer apaixonado por cinema, mais do que fã, não pode em consciência recusar-se a viver. Achando-se o que se quiser do frenesim ou do mérito da história, ver uma Guerra das Estrelas nestes termos é uma coisa que só acontece um punhado de vezes na vida.


Acho que já é líquido por esta altura que me é difícil separar o que é o filme, daquilo que representa a saga. Mesmo admitindo orgulhosamente toda a minha parcialidade, é com uma certa comoção que digo que foi... muito bom. E dizê-lo é tão catártico como tê-lo visto. É evidente que a Guerra das Estrelas não poderá jamais voltar a ser o sopro de futuro impossível que foi naquele ocaso dos anos 70, ou voltar a ter aquela magnitude refundadora do realizador ao argumento, do admirável mundo novo visual até às avenidas de criatividade absolutamente sem limites e sem termo de comparação, que chocaram aquela era. Mas é com honesta felicidade que sublinho que JJ Abrams foi o homem certo no lugar certo. O fardo era dum peso bestial, o negócio tinha chances desfavoráveis e todo o novelo era, afinal, assombrado pelo falhanço de casting com que todo o planeta recebera em agonia The Phantom Menace, em 1999. O pai de Lost, o reinventor de Star Trek o que faz é um abraço do tamanho da galáxia a toda aquela excepcional universalidade, um abraço de fã, com o entusiasmo e o gosto de quem está num gigantesco e infindável parque de diversões, deliciado com cada sequência, comprometido com cada viagem, emocionado com cada reencontro.


The Force Awakens é um filme tecnicamente inatacável e monumental. 2h15 de pleno gosto, onde tudo se derrama na medida certa, sem exagero mesmo no que é exagerado, sem poupança mesmo no que é poupado, de excelência sob qualquer prisma, um filme ao qual, visualmente, não há nada a acrescentar. JJ Abrams viveu à altura da reputação e pôs na rua um show atraente mesmo para quem não tiver nada a ver com isto, um filme com vida própria, capaz de mostrar aos novos de hoje de que é que são feitas aquelas estrelas. Essa capacidade de sedução é o inevitável cartão de visita para quem for espreitar as perniciosidades da história. E aqui chegamos ao guião, que fora o aspecto mais frágil das prequelas e aquele que marcaria o grau de sustento de todo o novo empreendimento. Se é certo que a espinha dorsal da narrativa não puxa de nenhum ás de trunfo, acho que a maior parte das pessoas também concordará que o argumento excedeu as expectativas. Com uma ligação carnal à narrativa-mãe, patente em quase todas as esquinas, o desvelar da acção consegue aguentar-se nos próprios pés até ao fim e resistir a quaisquer suspiros desiludidos que o quisessem diminuir. Os novos segredos aguentam-se, seduzem-nos, sabem temporizar-se - alguns deles mantêm-se segredos -, e têm uma singular chave de ouro: as personagens.


The Force Awakens devolve a Guerra das Estrelas às personagens, numa dicotomia entre legado e pujança, entre os galões dos velhos e a vitalidade dos novos, e é de encher a alma. A cena do regresso da Han Solo à sua Millenium Falcon, 32 anos depois! de Return of the Jedi, é um nó cego na garganta. O momento em que a pisa novamente, com o seu inseparável Chewbacca, mas ainda depois disso, os segundos em que se deixa estar a balbuciar na cabine, com os olhos a brilhar, como se tivesse esperado por isso em todo e cada um dos dias em que estiveram distantes, seria suficiente para querer fazer isto tudo outra vez. Harrison Ford é, de resto, a figura nevrálgica e verdadeiramente patriarcal do filme, ao que responde com total compromisso e espírito, com uma genuinidade que não encontra esforço. Disse-se, na antecâmara, que este era o filme que lhe tinha recuperado a alegria de actuar e o seu carácter de estrela pop, e é impossível contestá-lo. Solo viveria sempre por si enquanto personagem mas, pese todo o legado, é uma interpretação reverencial da parte de Ford.


Finalmente, o ponto alto: se o Episódio VII tem uma estrela que brilha acima das outras, essa tem 23 anos, olhos verdes e nasceu em Londres. Daisy Ridley é um avassalador acerto de cast, uma gema preciosa descoberta numa galáxia muito muito distante que, mal é desempoeirada, se põe a luzir de uma forma quase desarmante. Já li sobre ela que é a personagem feminina melhor formada e mais bem maturada de sempre em Star Wars, mas diria mais, diria que é uma das mulheres de maior poder e potencial que vi nos últimos anos. Ridley é uma força da natureza. É terrivelmente realista. Corajosa e abnegada sem ser necessariamente heróica, vulnerável sem ser superficial mas, antes, empática e cativante. Gosta-se logo dela, quer-se que as coisas lhe corram bem e anseia-se que viva à altura do seu destino que, por ora, parece gloriosamente grande. Investir sem pejo numa figura feminina para o núcleo da acção era só uma excelente ideia à espera de o ser, e foi-o na plenitude. De entre os novos, John Boyega - com uma falibilidade honesta que nos conquista - e Oscar Isaac - com o glamour da juventude de Han Solo - saem na mó de cima, como também sai o adorável boneco de Lupita Nyong'o. Adam Driver, numa das personagens-chave, é porventura quem mais fica a dever ao papel.


As contas deste Force Awakens eram, no fundo, muito simples: ou acertava de pleno direito ou falhava a todo o vigor. Ganhou. Mais do que isso, ganhou a jogar bem. Confiamos e fomos recompensados porque sim, é o melhor em mais de 30 anos, sim, é o filme pelo qual estávamos à espera e, depois, um pouco mais. Quinta-feira foi uma noite bonita.

8/10

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Bridge of Spies. Um bom filme dispensável


Parece-me pacífico dizer que, nos dias que correm, se queres fazer um filme sobre espionagem, ou mais, sobre a Guerra Fria, tens de ter realmente alguma coisa para contar. O tema já foi tão violentamente esgotado que, pese a mística intemporal e tangível, é preciso ter algum segredo na manga, alguma manha pronta a ofertar quando chegar a hora. Bridge of Spies, infelizmente, é uma ponte de sentido só. Começa-se a andar, é-se imperturbado e chega-se exactamente aonde se estava à espera chegar. Até pode ser uma ponte, mas tem muito pouco de espionável, porque é incapaz de seduzir-nos o suficiente. Não é, de facto, um filme mau ou sequer vulgar, ainda que o argumento seja perfeitamente enxuto, na reconstituição histórica duma troca de prisioneiros de guerra entre Estados Unidos e União Soviética, em 1960; é, no fim de contas, bem arrumado e simpático, mas é o arquétipo de um filme desnecessário, que acrescenta pouco ou quase nada e que não pede que se pague um bilhete.

Isto tem tanto mais peso pela contextualização que vale a pena fazer. Bridge of Spies afigurava-se, afinal, como um dos pesos pesados do ano, realizado por Spielberg, escrito pelos Coen e protagonizado pelo reverendíssimo Tom Hanks. Do leque, só mesmo o último soube estar à altura. Na linha do que escrevi acima, o argumento é francamente linear. Parte dos factos verídicos, mas é quase invisível para além disso: não tem rasgo, não tem cenas fortes, não é emocionalmente exigente para os protagonistas e não plasma, sequer, nada do que notabilizou os Coen, seja a perversão, o tipo de humor, o negrume ou o carácter cáustico, desafiante e cru. É um filme muito liso, muito morno, como se com isso quisesse perpassar alguma tensão... mas sem nunca o conseguir. Tem uma única cena contagiante, na honestidade do regresso a casa, que lhe marca o desfecho. Fica por aí.

A maior desilusão é, contudo, Spielberg. Num projecto realmente à sua imagem, com aquele toque imperial que lhe assenta tão bem, o seu apagamento é inexplicável. Bridge of Spies não é de todo atraente a nível visual. É um filme que parece irrelevado ou quase ignorado, e deixado a fazer sozinho. Aquela vida em permanente lusco-fusco, tão cara ao espectro da Guerra Fria, nunca é interrompida por nenhuma injecção de charme, por nenhum lance de inspiração. É uma contínua película uníssona, na mesma frequência e no mesmo tom, como um monitor de actividade cardíaca que já morreu. Três anos depois do excelente Lincoln, o velho mestre volta assim a cair no nevoeiro que lhe marcou a última década, e onde se contam filmes tão infelizes como o último Indiana Jones, Tintin ou War Horse

A boa notícia é, como quase sempre, Tom Hanks. O maior bonacheirão de Hollywood é o pilar do filme e aguenta-o uma e outra vez à base de fôlego, mascarando as ditas falências com base no facto essencial de gostarmos dele. Note-se que está longe de ser uma performance laureável, nada que se compare, por exemplo, à monumentalidade encontrada em Captain Phillips (2013), mas, num filme diminuído a vários níveis, Hanks sabe como levar as pessoas e empresta à acção a humanidade e a empatia que a história não demonstrou ser capaz de dar. Mark Rylance, nas roupas de espião soviético, acabou por ser a boa surpresa. Num papel que pareceu por ora demasiadamente calculado, no estatuto adquirido de espião que nunca o recusou ser, Rylance veio afinal, e na linha da sua própria personagem, roubar-nos respeito pela sua dignidade, temperança e dedicação. Um papel estilizado e peculiar que acabou por lhe valer a surpreendente nomeação para Melhor Actor Secundário nos Globos de Ouro.

Ver Bridge of Spies não é penoso, mas está longe de ser contagiante e é inevitável assumir a desilusão com um produto ao qual era obrigatório exigir mais. Com determinado nível-base e com boas personagens, limitar-se-á a passar à História como um bom filme de domingo à tarde.

6/10

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

In the Heart of the Sea. Há histórias que não sabem falhar


A ambição era refazer um filme sobre nada menos do que Moby Dick. 100 milhões de dólares de orçamento, Ron Howard nas rédeas (Cinderella Man, A Beautiful Mind, Frost/Nixon, Rush...) e um elenco cravejado de estrelas para todos os papéis, do poster boy Chris Hemsworth a estrelas emergentes como Ben Whishaw (o "Q" dos novos Bond), de certezas absolutas como Cillian Murphy a instituições unipessoais como Brendan Gleeson. In the Heart of the Sea era um daqueles filmes aos quais se passa um cheque em branco, um daqueles que escolheu quase tudo de olhos fechados... e que, no fim, era suposto render verdadeiramente pouco. Um daqueles blockbusters onde esperamos, tão só, ter a sorte de encontrar alguma vertigem e alguma catarse. Este, contudo, foi demasiado bem escolhido para o seu próprio destino. Com uma odisseia intemporal americana trabalhada a tantas boas mãos, dobraram-se as tormentosas probabilidades e o que temos, afinal, é um certo fascínio a espreitar a vários níveis.

In the Heart of the Sea não parte directamente da maior de todas as obras de Herman Melville, mas do livro bem mais recente (National Book Award for Nonfiction, em 2000) de Nathaniel Philbrick, sobre os factos verídicos que motivaram o histórico naufrágio do baleeiro Essex, em 1820, no coração do Pacífico, e que viriam a render a magnânima epopeia da baleia gigante e dos náufragos de 90 dias, imortalizada em Moby Dick. O grande acerto do filme, aquele que define o seu sucesso, parte sobremaneira disso: In the Heart of the Sea é verdadeiramente genuíno, porque conserva muito perto de si esses "factos verídicos" e a mística das transcendentais histórias de mar, de gigantismo, mito e sobrevivência. Alimenta-nos com isso, faz-nos crer, envolve-nos e sabe-nos contar uma história, pelo destrinçar do argumento, sim, mas, mais ainda, pelo contexto, pelo ambiente e pela felicidade ao romantizá-los, desde aquela chegada de Melville a Nantucket - o maior porto baleeiro do mundo no século XIX - para entrevistar a uma madrugada o último sobrevivente, com uma garrafa de whisky e um dose ainda maior de expiação. É um filme onde gostamos de estar, que desperta a criança curiosa, fascinada e impressionável que temos no coração, e é um filme bonito, por ter esse jeito em trazer-nos um clássico, quando era muito fácil desperdiçar-se completamente num vácuo de espectacularidades bacocas e efeitos especiais.

O filme é cativante, ainda que seja inevitável reconhecer que não estamos na presença de nada supremo ou refundador. É uma obra que essencialmente se acarinha, como boa história e património histórico, não quiçá reflexiva ou fabular, como encontramos, por exemplo, em Life of Pi, num filme da mesma água. Isso, no entanto, não lhe retira o mérito. A adaptação de argumento ficou a cargo de Charles Leavitt (autor do incrível Blood Diamond) e, se às vezes falta algum tacto a temporizar a acção, lá está, a dar-nos mais tempo para pensar, o que era verdadeiramente essencial, ou seja, o exercício de fascínio, ainda para mais num projecto deste tamanho, foi conseguido com distinção. In the Heart of the Sea não só não era um "filme de realizador", como a realização movia-se, aliás, num abismo perigoso, pela propensão em exagerar e se perder. Nesse campo, este estará longe de ser um dos melhores filmes da carteira insultuosamente luxuosa de Ron Howard, mas o oscarizado americano protege-o ou, por outra, evita que o estraguem. Existem ocasionais sequências demasiado artificiais e são patentes os sucessivos cenários de laboratório, mas o filme é bem mais púdico do que aquilo que se poderia esperar e essa é outra das suas vitórias.

Costumo ser bastante preconceituoso quanto a elencos de luxo, sobretudo se se destinarem a filmes deste tipo. Este tratou-se, porém, de mais uma saudosa excepção. Chris Hemsworth, com quem simpatizo, continua a construir uma carreira comercial relevante e abraça o lead com uma franqueza e uma empatia que lhe começam a ser imagem de marca. Cillian Murphy é o trunfo que queres sempre ter a teu lado. E, por fim, um filme com Brendan Gleeson tem como que uma responsabilidade moral de ser bom. O seu papel cirúrgico de último sobrevivente do Essex impinge de carácter tudo o resto e dá-lhe o peso dos grandes épicos. Tenho para mim que, quando se principiou a produção de In the Heart of the Sea, não havia sequer a ambição de fazer algo tão narrativamente envolvente e, quiçá, carismático. O feliz resultado é um dos bons filmes do ano e uma oportunidade generosa para mergulhar num das grandes histórias do nosso ideário contemporâneo.

7/10

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Steve Jobs. Conceptual, poderoso, viciante



Steve Jobs não é o homem mais importante do filme. É irónico, no filme sobre a sua vida, mas o mérito de um dos musts do ano é mesmo de quem o escreveu.

Normalmente, idolatram-se actores ou realizadores. Idolatra-se quem aparece nas fotografias, quem dá as entrevistas, aqueles, no fundo, de quem se vê o trabalho. É difícil idolatrar os heróis não cantados. Ao pensar nisto, lembro-me sempre do meu velho John Spencer que, ao receber o primeiro Emmy da carreira, aos 56 anos, se dirigiu ao seu argumentista para dizer:
"I serve at the genius and the art of Aaron Sorkin, one of the great writers of all time. An actor is only as good as the material he gets; and we were given gold week after week after week. I don’t know how he does it."

A série era West Wing - Os Homens do Presidente. Aaron Sorkin, pois claro, o seu pai criador. Uma e outro são, até hoje, os melhores que já vi. Sorkin tornou-se, para mim, uma figura de culto. Um monstro sagrado dos guiões, o maior de todos. Capaz de idealizar o que mais ninguém escrevia, com a cadência que mais ninguém imprimia. Para quem escreve umas coisas, para quem sonha escrever mais e melhor, para que consome cinema e televisão, Sorkin foi um deus. Um iluminado filosofal, da forma e do conteúdo. As primeiras quatro temporadas de West Wing, após as quais abandonou a sua própria criação, são património da Humanidade. O mestre contudo, assombrado como os maiores, com problemas graves de toxicodependência, não voltou depois a atingir semelhante Panteão, ainda que todos os seguidores tenham continuado a deslumbrar-se a episódios, como ao ver as fintas de um velho craque nos anos de ocaso, em Studio 60, Newsroom ou, em cinema, ainda com Moneyball. Este texto não seria suficiente para exprimir toda a admiração que tenho por Aaron Sorkin. Ainda assim, não ousei apostar tudo neste Jobs.

Por ironia do universo, Sorkin ganhou o Óscar que lhe estava no destino, infelizmente, e como acontece tantas vezes, quando não o merecia. Quase num insulto honorário ao seu próprio génio, com um dos seus trabalhos mais vulgares. The Social Network (2010) foi um filme tarefeiro, desencantado e inevitável. Um filme para ganhar dinheiro, que alguém tinha de fazer. Um filme sem um pingo de alma, que lhe rendeu um Óscar de secretaria, logo a ele, que nunca precisaria de um. O meu medo em relação a Steve Jobs era, por isso, incontornável. Era que fosse o próximo filme de artifício, sobre uma figura pop da cultura tech, era a ameaça de ser mais um prego sombrio no vulto dum vanguardista. Não foi. Steve Jobs é, na verdade, o grande trabalho de Aaron Sorkin desde o adeus à Ala Oeste da Casa Branca. Isso quer dizer que é muito, muito bom.


Por mais evidentemente suspeito que seja para falar, este é o arquétipo de um filme de argumentista. Um filme em que o guião é a jóia da coroa, aquilo que o enche de vida e o faz pulsar, tão bom que perpassa a óptima câmara e as boas interpretações. Ali, ao fim do primeiro quarto-de-hora, o texto já ganhou. Já nos bateu de frente, dobrou e convenceu, a um ritmo tão electrizante, tanto à imagem do seu autor, que tudo o que temos a fazer é agarrar-nos à cadeira e sobreviver à viagem. Jobs é como um filme de acção, mas em diálogos. Esse sempre foi o mais pleno de todos os super-poderes de Sorkin. As conversas relampejantes, cortadas em monólogos, aceleradas em andamento, de porta em porta, de sala para sala, com o mundo a rumorar à volta, o "walk and talk" e o "smart and funny" que fizeram de West Wing um produto gravosamente profundo e, ainda assim, magnanimamente cool.


Jobs é um filme em três actos, que biografa o Da Vinci dos computadores decantando-o nos bastidores de três das suas apresentações mais emblemáticas - Macintosh, NeXT Black Cube e iMac -, num espaço de 14 anos (1984-1998). E é tão brilhante na forma como no feitio. Falhar uma biografia é, de resto, muito fácil. Ser redundante e desinteressante e não conseguir, afinal, reinventar a roda. Neste caso, o formato do filme foi metade da vitória. Uma moldura inortodoxa, porque imprevisível, capaz de desmanchar criativamente algo que era normal não se saber por onde pegar. Como seria natural, é também o filme de um homem só. Não é lírico, como não era suposto que fosse, nem simpático, nem inspirador, como é parte substancial da obra de Sorkin. É, pelo contrário, provocador e subversivo, impingindo uma personalidade fortíssima, quase limite, à sua figura nevrálgica. Este Steve Jobs é um vulcão que nos hipnotiza pelos seus modos, pela sua energia e pela sua intensidade, e do qual não podemos simplesmente desligar, num análogo síndrome de Estocolmo, que nos faz intolerar toda a sua arrogância e, ainda assim, não conseguir abstrair-nos da sua aura atordoante. É poder em estado puro.


Na sua terceira chamada aos Óscares, depois de Slumdog Millionaire (2008) e 127 Hours (2010), Danny Boyle apresenta-nos o seu trabalho mais grandioso. O britânico tende a ser um realizador que deixa os filmes respirarem bastante pela sua teia de ideias, puxando-se a um segundo plano, alguém que se evidencia mais pelas suas escolhas temáticas, do que pela sua técnica. Como em tudo o resto aqui, porém, o argumento de Sorkin transforma-o para melhor. Pede-lhe atenção e reacção, pede-lhe que esteja à altura e que, qual maratonista-guia, corra com a câmara ao mesmo ritmo de tudo o que lhe escreveram. O resultado é de alto nível e a realização é outro ás do filme, porque de excelência. Toda a cena ressurgida do despedimento de Jobs da Apple, desde a conversa num átrio deserto dum coliseu à memória da sala de reuniões fatídica, a combustão, a escalada, o corte de planos e as aberturas, tudo é material de uma majestade palpável, que eleva o filme a um plano olímpico e lhe dá a altitude dos Óscares.


Uma biografia não se poderia ter feito sem o protagonista, como é óbvio. Fassbender deu o litro e foi essa figura-chave... ainda que este não seja um filme das interpretações. Sou um fã confesso do germano-irlandês, e muito me bati por um Óscar há dois anos (12 Years of Slave), pelo que tenho a consciência tranquila ao dizer que a sua performance é boa para o filme, mas não é assim tão boa para ele. O papel é imaculado, consistente, inerentemente competente em tudo o que lhe poderiam pedir. Tem costas para aguentar o peso, incorpora uma imagem de marca e Sorkin será, hoje, um treinador orgulhoso. Todavia, no final, gabamos o ritmo, o poder e a não linearidade do retrato... mas não temos ali um papel da nossa vida. Infelizmente, faltou aquele momento, aquela "extra mile". Jeff Daniels, que não adoro, cresce com o filme, Kate Winslet, sem demasiado espaço, é equilibrada a tempo inteiro e Michael Stuhlbarg assenta bem, ao passo que Seth Rogen é mau, como sempre, e Katherine Waterston (a ex-namorada) é invisível. O traço mais forte do cast, à parte Fassbender, é a sua filha... representada sucessivamente, e sempre bem, por três actrizes diferentes, dos 5 aos 19 anos. A perturbadíssima relação paternal entre ambos, um terreno querido de Sorkin, acaba por ser o ovo da Páscoa do filme. Não o vemos de imediato, tão a ferros e tão desamorável mas, ao fim e ao cabo, consegue ser tão dolorosamente impactante, e até tragicamente bonito, nos seus diversos laços, até ao diálogo final.


Steve Jobs é evidentemente um dos filmes do ano. Um emocionante regresso à elite de um dos maiores guionistas de sempre, um incinerante retrato de uma das personalidades mais singulares da História Contemporânea, um filme conceptual, poderoso e perfeitamente viciante.

8/10

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

007 Spectre. O filme que ninguém queria fazer


Os Bond de Daniel Craig têm um antes e um depois.

Diz-se isto porventura mais do que era devido mas, em 2006, o que fez Casino Royale foi romper com um paradigma vencedor de 40 anos: o do agente galã por si só, subversor de qualquer narrativa com a mesma facilidade com que virava copos de martini e amassava as mulheres mais bonitas do mundo. Sempre fora por isso que as pessoas seguiam a filmografia do agente dos agentes: pelo glamour, pela catarse despreocupada, pela desconstrução conspirativa sem levar nada demasiado a sério. Casino Royale, realizado por Martin Campbell, e co-escrito pelo trunfo Paul Haggis (argumentista dos dois vencedores de Óscar anteriores, Million Dollar Baby e Crash...), não foi só um filme ambicioso. Foi um marco refundador do que podiam ser os Bond e todo o género espionagem por arrasto, à semelhança do que foram os Batman de Nolan para os super-heróis. Uma porta escancarada para o melhor drama e, com isso, para o quebrar da barreira entre o que era um filme de entretenimento e o que podia ser um filme de elite, "sem género".


Como qualquer operação tamanhamente basilar, nada disto se faz de uma só vez. É por isso que Quantum of Solace, dois anos depois, foi um filme perdido, inócuo e emparedado num propósito que o excedia largamente. Se o atentarmos, porém, como meio para chegar a um fim, a valia está lá. Afinal, é a partir desse desconto de tempo que se constrói o melhor Bond de sempre. Skyfall teve o melhor realizador e a melhor realização. A melhor fotografia, o melhor vilão e a narrativa mais encarnecidamente pessoal. Sam Mendes, o primeiro oscarizado a dirigir a saga, varreu do avesso todas as convenções, John Logan, o reforço de luxo no argumento (Gladiator, The Last Samurai, The Aviator), tornou tudo demasiado fácil. Skyfall, o primeiro Bond a passar a fasquia dos mil milhões, Óscar até de melhor música original, foi afinal, e como se comprovou agora, a medida impossível de suceder.


O lançamento de Spectre ficou marcado por uma série de episódios muito pouco amoráveis, muito alheios àquele rastro cósmico que costuma envolver todo o lançamento Bond numa gigante passadeira vermelha. Desde logo, o aparente enfado de Sam Mendes em repetir a experiência, ele que a recusou em primeira instância e só lá foi com um dedicado convencimento dos seus pares; depois, e muito mais pronunciadamente, o asco do próprio Daniel Craig, que passou a temporada promocional a falar do quanto estava farto da saga e do quanto a queria ver pelas costas. Depois de visto, se há percepção que transpira do filme de uma forma cristalina é essa: ninguém o queria realmente fazer. Spectre é a ressaca de Skyfall. Um filme à força, uma cláusula de contrato, um tarefismo de serviços mínimos. A falta de comprometimento com aquilo, de tudo e de todos, chega a ser desconfortável.


Daniel Craig assina, sem grandes subterfúgios, a sua pior performance no papel. Completamente apagado, como um jogador que vem de uma época de luxo e que já não encontra motivação para começar tudo outra vez. Craig está cansado e é cansativo, está sempre distante (até com as contra-partes femininas) e, desta vez, a rudeza da sua cara e dos seus modos não respira rigorosamente para além disso. Léa Seydoux confirmou, a seu turno, todas as reticências que havia quanto à sua escolha e fica a léguas de deixar qualquer marca, como uma das Bond girls mais transparentes de sempre. O argumento, e novamente com John Logan a bordo, é tão primário que chega a ser constrangedor. Spectre deveria representar, alegadamente e à luz da História, um momento estruturante na linha da acção, com o vilão maior, a Bond girl mais perene e a organização arqui-inimiga por excelência; o que vemos, pelo contrário, é uma amálgama de meias-ideias todas superficiais e miseravelmente mal concretizadas, coladas umas às outras com a mesma coesão de quem empilharia fascículos de Ian Fleming num canto da sala. A escala de subrendimento, porém, ainda piora.


Depois do maior showdown da série, Sam Mendes entrega porventura o filme mais modesto da sua carreira, um que, quanto muito, parece ter revisto por alto, enquanto fazia outras coisas a sério. Nem deu para disfarçar. Visual e cenograficamente é sempre pobre, não havendo uma única cena que fique na memória. As sequências de acção, por sua vez, só fizeram pior a emenda do que o soneto, de cada vez que tentaram "arriscar". Sobra, por fim, o maior de todos os pecados. Não teria existido rigorosamente ninguém mais capaz à face da Terra para interpretar a némesis de Bond, o notório Ernst Stavro Blofel. Christoph Waltz era o homem certo no lugar certo, uma felicidade inevitável à espera de acontecer. O seu desaproveitamento quase integral, quase insultuoso, será lembrado como um indesculpável falhanço histórico. Escreveram-lhe um papel minúsculo e escreveram-no a correr. Escreveram-no sem um único traço, um único twist, um único golpe de sorte. O deserto de cena no laboratório do deserto de Tânger, aquele espectacular punhado de nada, resume tudo isso de forma muito mais cruel do que eu o poderia fazer.


Spectre é um filme quanto muito suficiente para consumo, mau se entrarmos em qualquer parâmetro de comparação. Vale pela marca, pela boa notícia que é Andrew Scott (o excepcional Moriarty de Sherlock) e pela última frame de Monica Bellucci, um sopro divino que há muito merecia inscrever este currículo. De resto, é um filme inconsequente, pouco pensado e pior executado, que faria recuar a franchise pelo menos uma década, em termos de ideário. Faria, se fosse para levar a sério. Não é.

5/10

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Olive Kitteridge, minisérie. A ficção também é demasiado real


Olive Kitteridge podia vir com o rótulo de não aconselhada a públicos demasiado impressionáveis. A vida, no fundo, também. Ser uma minisérie acaba por ser apenas a cápsula através da qual nos é contada uma história que é real. A toda a largura, é isso mesmo: uma série crua, sem embalo, nem contemplações, sem rede, nem lições de moral. É realmente triste e realmente dura, agredindo-nos por não estarmos habituados a que nos falem assim, e não é, por isso, uma série com a qual seja fácil criar empatia. Na maior parte do tempo, o que nos resta mesmo é ficar introvertidos e a desconfiar, até nos darmos conta de que, na sua forma desiludida, tudo aquilo é afinal demasiado genuíno. No fim, criamos o élan, não porque ela chegue a ser nalgum momento agradável, mas porque não podemos evitar compadecer-nos do carácter das personagens e dos seus episódicos momentos de humanidade, que nos deixam respeitosamente reverentes e desarmados.


A minha cena favorita é uma em que o brilhante Richard Jenkins, num qualquer dia vulgar de reforma, vê no supermercado um cartão dedicável à sua mulher, sendo ela totalmente alheia a esse tipo de demonstrações de carinho. Ainda assim, compra-o na mesma, e oferece-o na mesma com flores... para receber a exacta reacção que seria de esperar. Ele fica bem com isso, no entanto. Mais, fica genuinamente contente, de olhos a brilhar, só porque lhe disse uma vez mais que a amava, e porque dizer isso era maior e mais importante que qualquer reacção que ele pudesse ter de volta. Porque ele não o fazia pela recompensa, fazia-o somente porque para ele era importante dizer, e isso era em si completo, era o princípio e o fim. O privilégio de poder amá-la era dele. O resto não interessava realmente. A cena é majestosa por ser tão simples, por ser praticamente impossível de emular, e de ter inventado ou escrito num guião. Tão desencantada, tão pouco lírica e tão naturalmente bonita por causa disso.


Olive Kitteridge é uma obra original de Elizabeth Strout, vencedora dum Pulitzer em 2009, e adaptada para televisão por Jane Anderson, uma dupla vencedora de Emmy e do Writers Guild of America. Narra 25 anos na vida de uma mulher de meia idade, numa pequena cidade do Nordeste americano, uma mulher austera e de tendência depressiva, e todas as suas relações pessoais e familiares. Não é, garantidamente, uma série para todos os públicos e, mais do que isso, para todos os estados de espírito. Apesar de curta, como a própria tipologia indica (4 partes de 1 hora), é um produto para ver com tempo e com paciência. É uma série para "querer ver", já que, na minha óptica, o primeiro impacto estará longe do amor à primeira vista. Tal como admito que, mesmo quem vir de fio a pavio, pode perfeitamente lidar mal com o seu desamor, com a cara fechada e as parcas exaltações. É uma questão de estilo e de subtexto, às vezes de um momento ou de mero clique, ainda que não seja mesmo uma série que vá falar a toda a gente. No meu caso, não passa à História como inesquecível, e diria que porventura nunca teve essa ambição, mas deixa-me, sim, como respeitoso admirador. Essencialmente em dois planos que, sem prejuízo para outros, como a fotografia (a série tem palco no envolvente e melancólico Maine, o Estado mais a nordeste dos Estados Unidos, na fronteira com o Canadá), me parecem claramente de excepção: a lucidez e a crueza da adaptação, transcendental nos pequenos episódios dentro de cada episódio, alguns em que o próprio diálogo é irrelevante; e a genuinidade arrepiante de ambos protagonistas, no retrato que fora idealizado.


Fosse a série uma peça de teatro e, no fim, Frances McDormand e Richard Jenkins mereceriam 10 minutos de ovação de pé. Não é só terem sido tecnicamente perfeitos e emocionalmente massivos; é, lá está, serem tão ridiculamente fiéis ao papel, tão competentes a interpretar e a dar vida ao conceito, tão naturais nos pormenores, tão irrepreensivelmente fidedignos, que é quase criminoso dizer que aquilo não é mesmo a autobiografia de ambos e que McDormand e Jenkins eram uns pseudónimos de vida quaisquer. Podia dizer que Frances McDormand faz aqui o papel de uma vida, mas não estamos a falar de uma actriz qualquer, pelo que maior prudência é de bom tom. Com o Emmy arrecadado em Setembro, justamente por esta performance excepcional, McDormand fechou nada menos do que a sua Tríplice Coroa de Actuação, depois do Óscar por Fargo, em 1997, e do Tony Award em 2011, pelo original da Broadway Good People. Aqui, a única maneira de a descrever é dizendo que foi verdadeira demais para não ser verdade. Olive Kitteridge é uma mulher severa, realmente fechada, cáustica e pragmática, má com as pessoas e de modos perfeitamente incorrigíveis. Daquelas mulheres capazes de tornar qualquer ambiente constrangedor, qualquer situação desconfortável, e que raramente tem pejo em fazê-lo. É radioactiva e provoca no próprio espectador uma vontade de afastar-se dela, um alívio ao vê-la pelas costas. Toda essa consistência faz com que os momentos de ruptura narrativa sejam tanto mais fascinantes. A cena com o filho na cozinha, no fim do terceiro acto, toca forte por isso, pela desistência em ser implacável, desvelando o seu fundo difícil mas bom, e completando um círculo emocional muito, muito difícil de conseguir.


Já Richard Jenkins, um histórico secundário, sai definitivamente como uma das personagens de estima maior. O seu Henry é o homem de quem toda a gente gosta. Uma figura quente, carinhosa, irreprimivelmente dedicada e altruísta, verdadeiramente incansável. Na linha da cena que descrevi na introdução, não o faz, contudo, pela romantização da personagem... mas porque lhe está na pele ser assim. Sem nada em troca, sem sequer ter de ir a lado nenhum, Henry é atencioso, bondoso e dedicado, genuinamente porque essa é a sua maneira de estar no mundo. É uma personagem admirável, que nos deixa consolados sempre que se encontra em cena, como um reforço positivo do que pode ser um mundo melhor. Este texto não estaria todavia completo sem Bill Murray. Fez, tão só, a última meia hora do último episódio, mas foi exactamente a lufada de ar fresco que a série precisava para se concretizar. Num registo global cuja imagem de marca foi sempre a indução de maneiras de estar e de sentir, e portanto, muitas vezes "mudo", a dialéctica de Murray é o oásis no deserto, um raio de bonomia num dia de morte, cuidadosamente talhado para vir brilhar ao sítio certo.


Olive Kitteridge venceu no mês passado 8 Emmys, incluindo Melhor Minisérie e, nessa categoria, Melhor Realização, Argumento, Actor, Actriz e Secundário. É uma das jóias de coroa da temporada. Não será a série mais apaixonante que já viram na vida, mas sairão definitivamente mais ricos por sua causa. Isso é muito mais do que pode parecer à primeira vista.

8/10

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Mr. Robot, temporada 1. Uma overdose de Revolução


É uma série transparente, no sentido de que ou fascina ou não se suporta. Simples quanto isso. E acho que essa é uma opção criativa que merece todo o respeito. Por um lado, porque cria uma audiência de culto, dando-se à liberdade de continuar fiel à sua visão e às suas peculiaridades; por outro, porque não engana à falsa fé quem lhe tenha dado uma primeira oportunidade. Não só tenho consideração por esse tipo de séries, como acredito que a individualidade é, quase sempre, o caminho para a excelência. Neste caso, infelizmente, caibo na segunda categoria.


Vi metade da temporada e foi positivamente suficiente para perceber que não era para mim. Mr. Robot versa ou, dalguma maneira, psicopatiza a respeito de um outcast, um vigilante hacker com depressão diagnosticada, ansiedade social gravosa e uma espécie de autismo mais ou menos tangível, que se vai descobrir mergulhado num autêntico turbilhão conspirativo, decalcado à imagem e semelhança duma mescla entre os Anonymous e a Wikileaks. A série investe, a braços largos, nesse maná moderno que é o cyber poder, instrumentalizando um peão com um talento fora do vulgar para uma suposta Revolução a borbulhar desde as catacumbas da clandestinidade. Nessa viagem, recrutam o peão, mas recrutam igualmente os seus infinitos demónios, criando uma mancha alucinogénica que vai contaminar toda a acção da série. O meu momento definidor, porque castrante, foi uma sequência, a meio do 4º episódio, em que o protagonista vive um delírio de mais de 5 minutos, motivado por abstinência. É ostensivo, é cansativo e é redundante. É o tipo de pincelada artística, de aluamento fora da caixa que, comigo, não funciona.


Na crítica férrea ao status quo, nos modos punk e no negrume da realização, a série assemelha-se constantemente a Fight Club, àquela agrura dolorosa da luta contra uma sociedade cega, hipócrita e corrompida. Quando o nível de ambição conceptual é esse, e para conduzir o espectador em tamanha jornada, tens de ser muito bom. Tens de ter mais uma carta na manga, mais uma ideia improvável, tens de ter particularmente um arquétipo dramático onde vás buscar alguma identificação. Mr. Robot é uma casa assombrada, um pesadelo em jeito de terapia de choque que te esgota, mas sem nunca encontrares a razão para continuar a ver. Admito, como é óbvio, que seja uma questão de gosto. Aliás, gabo a forma e a própria execução. Só não retiro qualquer prazer daquilo, daí que prosseguir fosse redundante. Não ali nada que me impressione, que me interesse e, no fim, que me inspire.


Não acabo, porém, sem salientar alguns créditos. Desde logo, e tal como já vim a mencionar, a realização, ou mais do que isso, a consistência conceptual de Sam Esmail (38 anos), que criou um produto muito agressivo, muito negro e afligido e de digestão muito forte que, sabiamente apelidado de thriller cyberpunk, será certamente um must para qualquer apreciador do género. Como disse à cabeça, é uma série de autor, que não se esforça por chegar a todos os públicos, sendo, por opção, um produto cuidadosamente trabalhado para satisfazer apreciadores. Mesmo nos casos em que não sou um deles, sei reconhecer a fidelidade. Depois, e inevitavelmente, elogiar a prestação devota de Rami Malek, tão metamórfica que quase nos dói a pele, num registo tantas vezes vítreo e siderado, assustado e perdido, que nos constrange mais do que apega. É um dos papéis mais relevantes do ano e, se não, o mais cáustico. Num registo global menos delirante, teria valido a pena seguir o veterano Christian Slater, o anarquista que recruta Malek para um grupo de hackers, e Martin Wallström, executivo jovem, ambicioso e hardcore da corporação que incorpora o mal. 

Quem gostar de Mr. Robot, vai gostar muito; quem não gostar, saberá disso ao 2º episódio. É um negócio justo.

5/10  

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Narcos, temporada 1. Quanto custa ser Pablo Escobar?


Como é que se biografa, afinal, o gangster mais bem-sucedido de todos os tempos?

Encarar vultuosas figuras históricas traduz um nível de risco que, em muitos casos, só podemos perceber com clareza à frente no caminho. Por um lado, um registo tão marcadamente biográfico sabe contar com um nível de assimilação altíssimo, ou seja, o primeiro instinto do público é reconhecer, confiar e ver; por outro, as obrigatoriedades históricas e o alcance insano do personagem induzem-se tantas vezes tão onerosos, que é fácil cair na armadilha de fazer um grande nada. Diria que Narcos, mais um original Netflix, com a responsabilidade monstruosa de encorpar o sucesso de House of Cards, sobreviveu, para já, ao mais difícil: é um produto sério, crível e interessante. Mesmo que ainda não seja uma grande série.


E é normal que ainda não seja, ao fim da primeira temporada. A excepção é verdadeiramente o contrário. Narcos sugere ter na base um trabalho de bastidores brilhante. A nível técnico, é uma série que se esforçou por ser inatacável. Tem uma cronologia cuidadosamente velada, com timing quando escolhe descolar da História para deixar a história respirar, ou seja, ao definir os momentos-chave em que se tenta transcender interpretativamente na recriação dos episódios que nunca ninguém viu. O que acaba por ter em cuidado, planeamento arquitectónico e trabalho de casa, falta-lhe, contudo, em raça. É, pese toda a droga, toda a violência e toda a tonelagem de mortes, uma série durante demasiado tempo morna. Interessante, de facto, num plano quase intelectual, ou documental, mas emocionalmente curta. Com paixão de menos. Ainda que seja justo reconhecer que foi em crescendo. Se a primeira metade da temporada é, de facto, lisa, o desenrolar é largamente mais rentável, muito por culpa das personagens nucleares terem perdido a vergonha. Ainda não é suficiente, mas os sinais são bons.

Nesse último terço da acção, os ponteiros alinham-se, e é quando podemos beber verdadeiramente esse mundo surrealista louco da Colômbia dos anos 80, onde infectou, como uma gangrena, uma figura tão estupidamente ilimitrófe como Pablo Escobar. Conseguimos sentir as ondas de choque e chocamo-nos com o desplante e com a completa irracionalidade dimensional de tudo aquilo, o tal "realismo mágico", que serve de conceito filosofal à série, traduzindo que, naquela Colômbia, aconteciam coisas que só podiam mesmo pertencer ao Fantástico, desde os tanques pelo Parlamento adentro, aos atentados sobre aviões comerciais e a todo o quotidiano de guerra civil de um narco-Estado. Há que enaltecer, por fim, os préstimos da realização, assinada a quatro autores, com destaque inevitável para José Padilha, que define o tom inicial e reedita a parceria memorável com Wagner Moura, que valeu os Tropa de Elite. A filmagem daquela moldura latino-americana, que ele tão bem conhece, fez tudo um pouco mais realista, e essa genuinidade fica como uma das imagens de marca da temporada.


Na qualidade de fã confesso de Wagner Moura, foi com um gosto desmesurado que o vi chegar ao mercado televisivo mais importante do mundo. Uma oportunidade de luxo, com um papel de algibeira e a benção da Netflix. Nos primeiros dois terços de temporada foi todavia impossível esconder a desilusão. Constantemente preso pelos arames, o seu Escobar pareceu ter a profundidade duma folha de papel, sempre desligado, superficial, injustificado e inconsistente. Acho que esteve muito próximo de alienar a própria série, que não teria sobrevivido sem que emendasse a mão. Só quando a paranóia chega é que o tabuleiro se vira. Uma personagem que era simples, sem ser empática sob nenhum prisma (um mafioso resultadista chapa cinco, mais ambicioso do que devia, mas sempre inconsequente), torna-se finalmente no vórtex do autêntico Inferno que o rodeia. A descolagem total da mais elementar racionalidade, o descontrolo cego e a auto-destruição obsessiva varrem tudo à sua volta e imprimem-nos tamanho desconforto e imprevisibilidade que, tal como já disse, vão buscar por si próprios a segunda temporada.


O que vale para Escobar, vale para o seu contra-parte, o Agente DEA Steve Murphy, assinado por Boyd Holbrook. É ele quem reclama um protagonismo incontestado desde a partida, assumindo as próprias despesas de narração da série (essa uma excelente opção editorial). O problema é que a personagem propriamente dita foi sempre escassa... até lhe ceifarem as amarras da normalidade vigente e o tornarem abertamente desamorável. Murphy foi-se transformando, do newcomer arrumadinho, até ao agente cru e grosseiro, erodido pelo clima febril onde teve de aprender a mover-se. A sua aparente escalada de desagregação será outro dos grandes trunfos do que estiver para vir. Num elenco bastante interessante, onde salientaria Maurice Compte (um oficial incorruptível que correu enquanto lhe deram pernas) e Juan Pablo Raba (número 2 de Escobar), a personagem mais consistente a tempo inteiro terá sido Pedro Pascal, o bem conhecido Oberyn Martell, de Game of Thrones. Foi o mais carismático e o que mais rapidamente se encontrou no papel de detective experimentado, meio rock&roll, meio pragmático. No fim, acaba por ceder a ribalta para que outros pudessem brilhar, mas merece o reconhecimento.

Narcos está longe de ser uma série acabada e merece os anticorpos que enfrentará em primeira instância, nomeadamente nessa tal dificuldade em seduzir a audiência durante boa parte do tempo. Não sei de quantos merecerá o voto de confiança, mas o seu tamanho parece-me inequívoco e os indícios que deixa fazem crer um regresso de maturidade e afirmação, com algo de ainda mais escobariano na forja.

7/10

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Os refugiados de espírito


"Só não poderemos tolerar a intolerância"
Karl Popper

Neste último par de dias, vi boa gente a tentar educar. A tentar argumentar e sensibilizar. Pela informação, pelo contexto, pela humanidade. A tentar colocar as coisas em perspectiva. Fazer contas, relativizar. A tentar desconstruir pelo bom-senso xenofobias inteiras. A tentar explicar coisas tão simples como que os sírios não nos vão invadir o país. Que são tão poucos, afinal, os que vêm. Os que conseguem vir, porque não morreram pelo caminho. Que aquilo que nos prestamos a fazer agora é, no fundo, não mais do que um gesto simbólico, de quem sempre virou as costas ao problema, de quem os deixou sucumbir até ser humanamente insustentável. De quem contribuiu decisivamente para lhes implodir a balança de poder e deixou meio continente ao fogo e à sua própria sorte. Não vou tentar explicar que os refugiados não nos vêm assaltar as casas. Nem fazer guerras civis no coração das nossas cidades. Que não vão criar milícias subsarianas, nem sequer roubar os nossos trabalhos. Que não vão tirar o comer da boca das nossas famílias, nem propriamente desalojar os nossos pobres. Não vou, porque tenho a minha inteligência em melhor conta do que isso. Não vou, porque se vocês precisam desse convencimento, não merecem realmente o meu tempo. O único sentido deste texto é falar de imbecilidade e para isso, felizmente, não preciso nem de teorias, nem de estatísticas. Porque se vocês olham para seres humanos que já perderam tudo, toda a pequena miséria que algum dia tiveram, que já perderam a sua réstia de esperança, o seu fiapo de dignidade e, até, os seus próprios filhos, e que se sujeitam a fugir para as nossas praias em condições muito piores que as dos piores animais, num caminho com chances espectaculares de os matar, se olham para esses seres humanos, e o vosso instinto não é imediatamente o de ajudar, e ter o dó de aliviar-lhes a dor, desejando-lhes, pelo contrário, que morram mas que não vos cansem a vista, porque não querem andar nas mesmas ruas do que eles, então não é o meu tempo que vocês não merecem. É o meu respeito.

Ontem acordei e tinha voltado à Idade Média. O exercício tem menos piada do que julgava em miúdo. Afinal há muito pouca magia em ter tanta gente à volta a pensar com séculos de atraso. A dada altura, já esperava que viessem autoridades a cavalo pedir que nos dirigíssemos para a parte amurada da cidade, e que começassem a distribuir armaduras à medida, escudos e espadas a metro, mas ainda não. O barco dos refugiados ainda não deve ter saído. Afinal há mesmo muito pouca magia em viver no nosso próprio buraco, alheios a esse mundo estrangeiro e tormentoso que há de estar lá fora, a vomitarmo-nos a medo de ódio por quem não conhecemos. Sabe-me bem ouvir que esses terroristas querem vir para cá e nem compreendem o nosso estilo de vida. Que virão, com certeza, destruir todas as nossas conquistas sociais. Não é deliciosa a ironia? Todas essas entesouradas conquistas do Estado de Bem-Estar, para o qual todos aqueles que abrem a boca teriam poeticamente contribuído zero, merda nenhuma, porque estariam muito preocupados a emparedar-se nas suas próprias casas, de trancas à porta, sequiosos de manterem cada singular privilégio que deus ou a sorte lhes deu, e que apodrecessem "os outros" à vossa porta, que com isso podiam vós bem. O Estado de Bem-Estar que não existia se fosse à vossa consideração, e o qual devem a gente infinitamente melhor do que vocês, seres humanos um bocadinho maiores, um bocadinho mais generosos, um bocadinho mais visionários e corajosos, que ousaram usar a sua condição para melhorar a vida de todos, por acreditarem que valia a pena que todos tivéssemos as mesmas condições e as mesmas oportunidades, ou que pelo menos tentássemos. Fôssemos um adulto rico na Suécia ou um velho pobre em Portugal, fôssemos até, e que o raio nos parta, no continente mais espectacularmente cosmopolita que existe, um miúdo orfão que teve o azar de nascer numa guerra na Síria. É isso o Estado de Bem-Estar, é esse o vosso estilo de vida, que só foi possível por culpa de gente que acreditava em tudo o que vocês não acreditam, gente capaz de, com tudo na mão, com tudo a seu favor, tirar a cabeça da sua própria fossa e ter um gesto de generosidade para um século a seguir, quando vocês não são capazes de, sentados em todo o vosso gorduroso conforto, na sociedade mais protegida e privilegiada da Terra, ter um gesto de generosidade no vosso dia-a-dia.

Vejo a cara dum pai migrante realmente destruído, derrubado e morto por dentro, a chorar na desolação duma praia porque não podia, porque pura e simplesmente não podia salvar a própria filha, um tipo como nós, que às vezes olhamos para os nossos e pensamos que lhes falhámos, que os desiludimos, mas numa alucinação muito mais radical, que é não ter condições para se ser pessoa de pleno direito, e dá-me nojo ouvir que eles queriam era vir para este bem bom. Gente a quem ruíram a casa, queimaram os campos e assassinaram a família, gente sem poupança, sem cama e sem sequer um maldito lugar para ainda chamarem de país. E o ridículo que é lhes darmos um tecto para dormir e um prato para comer, aos menos de 1% que conseguirem chegar, é que é o vertiginoso e intolerável abuso que eles nos querem sugar das mãos. Ou então, ver os que ao menos têm a gentileza de reconhecer que eles só vêm porque a alternativa era um tiro, uma bomba ou um afogamento, mas que logo depois se corrigem, para lembrar que eles vêm, mas que não nos respeitam. Que "ouviram dizer" que eles cospem nos cestinhos da Cruz Vermelha, porque está lá o Cristo. Que jamais vão caber aqui, que têm repulsa do que somos. Acham que é possível fugir para um lugar cujo modo de vida se abomina? Que é realmente possível desprezar um sítio que nos salva a vida? Acham realmente que isto não é tudo o que eles nunca puderam ter? A Europa vai acolher uma ínfima parte do que estão a acolher a Turquia, a Jordânia e o Líbano, todos países malditos e muçulmanos. Acham que se eles nos tivessem asco, vinham? Vocês iam? Ponham a mão na consciência. Tenham vergonha na cara.

A grande vitória do Estado Islâmico não é recrutar radicais locais, é dar de comer aos nossos terrores ignorantes, deixar fermentar um bocadinho e depois sentar-se a rir do espectáculo. Da maneira como, ligeiramente arrastados para fora das nossas zonas de conforto, começamos logo a bulir e a convulsar, capazes de sacrificar tudo e todos porque nunca nos faltou nada e, portanto, nunca tivemos de dar o valor a coisas um bocadinho maiores do que os nossos caprichos preconceituosos e do que os nossos dramas de algibeira, coisas, sei lá, como a guerra, a fome ou a vida e a morte das outras pessoas. Ver gente de 25 anos, da minha idade, que vive na maior sociedade de informação da História da Humanidade, que tem acesso a mais conhecimento num dia do que há 100 anos se tinha na vida, gente que pôde ir conhecer o mundo e que teve todas as oportunidades e que, à primeira vez em que é chamada a comportar-se como adulta, cria petições no facebook para expulsar quem ainda não chegou, é uma tragédia tão grande como a dos que fogem.

De repente, do que nos lembrámos todos é de que há muitos mendigos em Portugal e de que eles é que precisam da nossa ajuda. De que há idosos a morrer sem medicamentos, crianças a passar fome e sobeja falta de emprego. De repente, vimos a luz. Pena é que esses proféticos patriotas só a tenham visto agora. Pena minha ter de lhes dizer que, se toda essa gente infelizmente existe assim, é porque primeiro falhámos enquanto sociedade. Porque, no fundo, fomos demasiado como eles. Demasiado hipócritas, demasiado preconceituosos, demasiado egoístas. A verdade é que aqueles que se inflamam são os mesmos que não dariam uma moeda a um sem-abrigo. Ou um lanche a quem tivesse fome na cara. Os mesmos que provavelmente mudariam de passeio se vissem um árabe na rua, apesar de irem à missa todas as semanas. Não se enganem: estes arautos da Nação tratariam exactamente da mesma forma o migrante sírio e o pobre português da vossa rua. Não é uma questão de circunstância, nunca foi. Do que se trata é da maneira de estar no mundo. É da cotação que se dá à dignidade humana. As coisas devem ser simplesmente postas nesses termos: boas e más são as pessoas, não as situações. E as pessoas agem sempre da mesma maneira. O que é insuportável é estar a ver de um lado todo um argumentário sócio-económico-cultural, e do outro só a boa vontade envergonhada, que quase parece irresponsável e criminosa, de quem acha que deve fazer a coisa certa. E enquanto uns têm todas as certezas, aos outros sobram as dúvidas, porque ninguém fala por eles. Porque ninguém lhes reitera que sim, que eles é que estão certos, que pensar assim e ser assim vale a pena. Por isso é que todo o reforço é pouco. Por eles é que é importante dar a cara. Sim, pelas pessoas boas, porque há gente boa e há gente má. Há gente que presta e há gente que nunca vai contar. Hoje em dia, se quisermos conhecer o carácter dum homem, bem podemos olhar para a forma como ele trata os seus refugiados. 

O que me apeteceu escrever era que tinha vergonha de ser português. Mas não. Tenho é vergonha duns quantos de vós. Porque, com todas as falências que temos enquanto povo, se há coisa de que nos podemos orgulhar nos quatro cantos do mundo é da nossa humanidade. Portugal, o país solidário, hospitaleiro e de paz, histórica e culturalmente mestiço, que recebe sempre como se recebe em casa e que o voltará a fazer mais uma vez, o país que terá sempre nas suas pessoas o seu maior e mais nobre activo. Um país bom, conservador mas tolerante, que foi o primeiro do mundo a abolir a pena de morte, que serviu de refúgio a todos os credos na Grande Guerra, onde todas as cores aprenderam desde muito cedo a viver iguais. Um país com uma diáspora monumental, que inventou a globalização e que foi dar novos mundos ao mundo, e que sempre fez vida a viver com os outros. Um país que cultiva a esfera armilar na bandeira e no coração de todos quantos partiram em busca de uma vida melhor, de uma singela oportunidade, de um voto de confiança de quem estava bem e não tinha nada a ganhar. E que, por isso, aprendeu melhor do que ninguém a respeitar quem é diferente. Que, por isso, sempre teve o brio e o orgulho de viver à altura do respeito que lhe foi confiado. Será que os nossos justiceiros da praça pública não têm familiares emigrantes? Um ou dois há de ter. É que há 5 milhões de portugueses lá fora. Se calhar até têm todos. E se os vossos tios, primos e amigos, se porventura os vossos pais tivessem sido escorraçados e tratados como cães doentes? Qual era a diferença?

No fim, eles, os refugiados, são mais livres do que vós. Eles conseguiram fugir duma guerra. Vocês ainda não conseguiram fugir das próprias cabeças. Dessa pobreza nenhum barco vos pode levar.

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Até amanhã, camaradas


Vi o Marítimo ao vivo pela primeira vez no dia 20 de Setembro de 1999. Lembro-me assim mesmo, como se fosse uma data de casamento. Não sei se é comum lembrar-se com tamanha exactidão do dia em que vimos o nosso clube pela primeira vez, mas até esse meu amor à primeira vista estava meio que previsto: tinha 9 anos feitos há um mês, de vida e de sócio, e aquela era a promessa contada do meu pai, a minha assunção na mais sagrada de todas as pias baptismais: o Caldeirão. Lembro-me dessa equipa com uma devoção gutural, qual panteão de heróis como não se fez antes nem se fez depois, craques cujas vultos estarei sempre condenado a lembrar numa medida inevitavelmente ingrata para toda a concorrência, que nunca os poderá realmente igualar.

Suponho que seja difícil fazer entender a um miúdo, na ingenuidade encantada do primeiro dia, que o futebol é, logo ali, muito mais do que futebol. Que as probabilidades não estão a nosso favor e que a realização desportiva se joga numa fina linha de equilibrismo, que perpassa, na maior parte da vida, o sofrimento, a fé e um amor incondicional. Que, pelo menos no mundo real, no nosso, as vitórias são poucas, mas que sabem muito mais por causa disso, por sabermos tudo o que elas nos custaram a ganhar. E que a vida, como o futebol, é muito mais especial assim. Se nunca nos acomodarmos nem acostumarmos, se nunca deixarmos de dar o valor, se mantivermos as ganas e a fome, no fundo, se conservarmos o privilégio de poder ficar sempre felizes como na primeira vez. Que o clubismo, como o amor, só pode ser realmente maior se jamais precisar de algo em troca. Se percebermos, como escreveu o Esteves Cardoso, que poder amar é o maior privilégio que se pode ter, a maior sorte, a única razão em si própria. Naquele dia, contudo, eu ia para ganhar, como é evidente. Confiante de que isso não só era possível, como provável. Como se alguém mo devesse e não pudesse ter a coragem de me deixar ficar mal. Nem poderia compreender de outra maneira.

Esse primordial jogo da época era nada menos do que um Marítimo-Porto, nada menos do que o Porto tetracampeão nacional que viria a imortalizar, no fim desse ano, Fernando Santos como o “Engenheiro do Penta”. Era um Marítimo-Porto especial por várias razões que, na altura, me ultrapassavam, uma das quais, por exemplo, ser a reedição do último jogo da temporada anterior, um profético 3-2 que nos valera a 3.ª qualificação europeia. A galvanização sentia-se grande, mas a onerosa máquina multicampeã tratou rapidamente de chamar-nos à realidade. Um tal de Mário Jardel marcou o primeiro dos humildes 36 golos que assinaria até à Primavera seguinte e deixou-nos logo ali, num mísero início de jogo, desferidos da sentença.

Lembro-me distintamente de uma infinidade de coisas dessa tarde. Dos jogadores, todos, do Van der Straeten ao Alex, do chão de calçada redonda e antiga, pejado de amendoins, das cadeiras azul e amarelas devoradas pelo sol, da curva acolhedora que fazia aquela Lateral Norte onde fui tão feliz, do cartão ‘Estádio Cheio’, das cervejas na mão quando ainda se podia e do mar ao fundo no Peão, do rumor e dos tambores, do meu primeiro cachecol da Sailev e da curiosidade de olhar isso tudo desde aquele palmo e meio. Houve, no entanto, uma imagem maior do que todo o resto, que eu continuo a ver como se fosse hoje e que me marcará para o resto da minha vida, dentro e fora do futebol. O momento mais importante do meu primeiro jogo nos Barreiros, do meu primeiro Marítimo, não foi a bancada, não foi um jogador, um golo, uma claque ou, sequer, esse resultado final. Foi estar, em cima do minuto 90, nas nossas velhinhas grades junto ao tartan, com o tempo a morrer-nos nas mãos, condenados, a olhar mais para o meu pai do que para o relvado. À espera de esperança. Ele segurava-me pela mão mas, todavia, à entrada desses pequenos minutos de descontos, nunca olhou para mim. Foi então que me enchi de coragem e perguntei, afinal, se íamos perder. Ele continuou a olhar em frente, imbuído da fé dos Primeiros Homens, com a única honestidade que o acompanhou toda a vida, com o mesmo olhar dedicado que o vi repetir dezenas de milhar de vezes até hoje, e disse-me, apenas, “ainda vamos conseguir”.


Perdemos esse jogo, como perdemos muitos outros jogos depois. Mas tudo o que sei sobre o Marítimo reside, até hoje, nessa única frase. “Ainda vamos conseguir”. Aconteça o que acontecer, ninguém vai nunca acreditar mais do que nós. “Ainda vamos conseguir”. Não nascemos favoritos e nunca seremos favoritos. Mas o futebol, como a vida, é muito mais do que um jogo de probabilidades. E o que o universo nos tira com uma mão, empresta-nos sempre com a outra. Os predicados com que não nascemos, somos nós que os fazemos. E essa é uma condição impagável, muito para lá do que nos fazem crer. Porque dá carácter, porque força a descobrir-se a si próprio. Porque faz-nos valorizar tudo o que é realmente importante e, aquilo que é realmente importante, não é passível de medir, seja em palmarés, mediatismo ou em vanglória. Não seres favorito só quer dizer que vais ter de trabalhar um bocado mais. Que vais ter de querer um bocado mais. Que vais ter de acreditar um bocado mais. E só na adversidade é que temos de acreditar nalguma coisa. Só na adversidade é que descobrimos em que é que acreditamos. Quando, à tua volta, percebes que precisam de ti para continuar, que a tua família não tem preço, que todos somos poucos e que, por isso, não temos jamais o direito de vacilar, é quando nos sentimos mais vivos. E, por isso, vivemos com mais sentido. Ser campeão é detalhe. A jornada é a única recompensa.

Até hoje, não há um jogo do Marítimo, seja em que terra for, com que adversário for, com que desvantagem for, em que eu não acredite, com toda a minha alma, que “ainda vamos conseguir”. Essa convicção é um dos maiores privilégios da minha vida. Toda a gente gosta do seu clube. Uns gostam mais. Alguns amam. Não sei quantos podem dizer que se orgulham. Porque o orgulho nasce necessariamente daquilo que estamos dispostos a sacrificar. Só se pode ter orgulho quando nos sai da pele, quando estamos dispostos a cair, mas a nunca desistir. Não sei qual é a gravidade com que se escrevem os hinos dos clubes ou se há, sequer, essa ambição de decantar-lhes a essência quando se o faz. O nosso, porém, ao buscar-nos as qualidades, fala, em particular, do orgulho e da altivez. Não poderia nunca ter sido mais claro. Não é que eu goste do Marítimo; ser do Marítimo é que é do que mais honestamente me posso orgulhar na vida.


Nesta perversão de probabilidades, a Taça de Portugal sempre foi um dos nirvanas do maritimismo. Não sei se havemos de ser campeões alguma vez, mas a vida não tem de ser uma liga de 34 jornadas, calculada a sangue frio, geneticamente reservada a uma elite particular. A Taça sempre foi o nosso escape, o nosso carinho mal escondido, conscientes da Festa e daquele coração imenso que a torna na única arena realmente democrática. Num dado dia, e mesmo que só nesse dado dia, todos podem ganhar a todos, e isso é quanto baste. Essa vitória é o suficiente para ser feliz, para mudar o destino, para fugir em frente. As provas a eliminar têm esse ADN especial de, se não matematicamente meritocratas, apelarem à transcendência que é o traço mais notável da própria condição humana. Nesses jogos, somos livres. Nesses jogos, somos sempre iguais.

A primeira vez que chorei com o Marítimo foi numa noite de Taça. Estádio do Bessa, 31 de Março de 2001. O Boavistão futuro-campeão-nacional prestava-se a martirizar com ambas as mãos um David verde e vermelho que, no gelo da noite do Porto, olhava para quem perdera 2 vezes em 8 meses com pouco mais do que o coração e a esperança derramados nas cores da própria camisola. A experiência foi tanto mais abissal porque não vi o jogo. Confiei na rádio, no futebol visto com os olhos dos outros, lido com a voz dos outros, especulado em cada silêncio, crido na escuridão. Esse Boavista-Marítimo foi um massacre bíblico. Estou convencido, até hoje, de que durou horas e, pior, sei o quanto pareceu sempre inevitável. Não sei se outra meia-final, jogada em casa dum campeão, virá outra vez a ter uma carga tão causticamente distorciva. 30 remates contra 1. O nosso, de bola parada, se calhar da única vez em que nela tocámos, com a baliza a dezenas de metros de horizonte e uma fé de milhares de quilómetros de mar. Chorei no fim como choram as crianças, sozinho na sala, ainda agarrado ao rádio portátil e de punho fechado, com medo de abrir os olhos, como se ainda ma pudessem tirar. Não o vi e foi um dos jogos da minha vida. O dia em que tive a certeza de que podemos sempre tudo. De que nunca ninguém me voltaria a dizer que os milagres não existem. O futebol é o jogo mais bonito do mundo.


Não estive nesse Jamor, meses depois, a ver desfolhar a maior bandeira que a Madeira já teve e os 14 anos seguintes passei-os a fazer contas com o meu pai, a essa viagem que havíamos de fazer. O que lhe jurámos, este ano é que é, e depois outra e outra vez. As eliminatórias que vimos esmagarem-se, qual rosário entre os dedos, sempre à procura dum intervalo do destino, entre prolongamentos em Alvalade ou tragédias em Campomaior. Fui estudar, corri o país com o Marítimo, formei-me e comecei a trabalhar. 14 anos são uma vida. Isso tudo e amanhã, ironicamente, voltarei a não estar em Coimbra para fazer a minha parte. Culpa de um futebol português embriagado e deplorável, intolerante ao regionalismo e alérgico às pessoas, que demora 2 meses para agendar uma final ultra-periférica para um dia de semana. Não é de hoje, nem nunca devíamos ter esperado melhor. E não posso honestamente negar no morto que fico por dentro, mas isso já não importa. Nunca nos deram uma fácil, nem nós nunca precisámos que dessem. O que nos resta é ir a mais uma luta, com o riso e a vertigem dos loucos, como se não nos pudessem realmente tocar. E não podem.

Aos que lá forem segurar o bastião, só tenho uma coisa a pedir: que valham por todos quantos queríamos lá estar. Vocês são os privilegiados, mas com o grande privilégio, vem a grande responsabilidade. E, lá dentro, seremos poucos. Lá dentro precisam de vós. Seremos de menos em tudo, mas nunca seremos de menos na vontade de ganhar. Sejam o leme. Contem-lhes de que é feito este Leão e esta terra. E provem a todo e cada um daqueles jogadores porque é que vestir a verde-e-vermelha é a maior honra da vida deles. Façam-nos perceber porque é que vale a pena lutar. O Marítimo não é uma má época, não é uma geração perdida, não é um punhado de futebolistas. O Marítimo somos nós, em tudo o que fazemos e em tudo quanto sentimos e, amanhã, o Marítimo começa e acaba em vós. Estejam à altura. Em romaria desde os quatro cantos do país, a descer de caravana do Porto, a subir de comboio de Lisboa ou a fazer a transatlântica de avião, levem a ilha até ao fim da rua e levem a nossa voz até ao fim do mundo. Não é que a Casa da Madeira seja em Coimbra, é que Coimbra seja a Casa da Madeira. E façam a festa da nossa vida, por vós, que vão esquadrinhar todo o país para lá estar, mas, ainda mais importante, por todo o Império do Almirante, da Venezuela à África do Sul, de França aos Estados Unidos, do Panamá à Austrália, por toda esta diáspora derramada na esfera armilar, que foi contar ao mundo o que é ser madeirense, e que ser do Marítimo é sê-lo ainda duas vezes.

A equipa que subir em Coimbra não é uma equipa de super-heróis, sabemos bem. Não é uma equipa de antologia, na ressaca de uma época memorável. É uma equipa que talvez estivesse mesmo destinada a ser esquecida. Mas, tantas vezes, tudo o que basta é merecer estar no sítio certo, à hora certa. A História não foi escrita por super-heróis. Nem nós somos clube de nenhuns. A História do maior clube madeirense, do único grande clube insular, Campeão de Portugal e primeiro toda a vida, a subir de divisão, a ir à Europa, a ir ao Jamor e agora à final da Liga, foi escrita por homens comuns, que ousaram, geração sobre geração, ganhar os jogos que não podiam. Homens como estes, homens como nós.

Amanhã não vos pedimos muito. Só que acreditem como nós. Que joguem como nós. Que se tudo correr mal, se tudo parecer ir falhar e se as circunstâncias vos forem engolir, que joguem como se fosse a primeira vez. Como o primeiro pontapé que deram na bola em Lorient ou Estugarda, em Lisboa ou no Rio de Janeiro, com a camisola de meninos, com os vossos pais a ver. Lembrem-se do brio que sentiram, de tudo o que fariam e de saberem que ali, naquele campo, não havia nada que vos pudessem roubar. Que era possível correr mais um bocado, mesmo quando já não era. E defender mais um bocado e atacar mais um bocado. Mesmo quando já não era. Que era possível sonhar mais um bocado. Para cada maritimista, enquanto vemos a vida passar-nos à frente, é disso que se trata.

Amanhã, mais do que nunca, não somos onze. Somos todos. E para nós, aconteça o que acontecer, “ainda vamos conseguir”. O resto são só 90 minutos onde viveremos juntos para sempre.