domingo, 14 de janeiro de 2018

Os loucos de Anfield


Mais que de qualquer outro, foi a vitória de Klopp.

O profeta do futebol rock&roll foi, como quase todos, à Premier League à procura do seu lugar no mundo. Bicampeão alemão e vice-campeão europeu no Borussia, chegou já bem passados esses anos de negro e ouro, a um santuário onde, desde há muito tempo, só se reza por uma coisa: milagres.

Nestes dois anos, nem tudo correu bem. Duas finais perdidas (Taça da Liga e UEFA) não contam para os zero títulos, o regresso à Champions pouco consola o absentismo da luta pelo título e os zero pódios. Chegou depois da última grande armadilha de Mourinho, viu Ranieri ser campeão contra todas as casas de apostas e, no ano passado, na primeira época completa, nem viu Conte passar por ele. Nestes dois anos, o Liverpool continuou a padecer de alguns problemas morais estruturais, desde logo, o hábito de ser fraco com os fracos, o que continua a dinamitar época sobre época, mais a falta de nervo para a equipa ser mentalmente resoluta e competitiva durante nove meses. Chegou a sentir-se que a dormência e o carácter errante talvez já estivessem tão enraízados, que não haveria mesmo nada a fazer. O falhanço era uma inevitabilidade, o Liverpool não era para levar a sério e estava condenado a um lancinante complexo de inferioridade para com os gigantes de Manchester, o Chelsea, o Arsenal e até o Tottenham.

Mas Klopp subsistiu. Fez a sua via sacra num e noutro dos infindáveis meses de Premier League, deu a face de todas as vezes, nunca se assustou e nunca se escusou com a sua própria sombra. Respondeu a todas as dúvidas, sobre a génese desfeita do Liverpool, e sobre os seus próprios anos áureos, com um foco e um fôlego flamejantes, como se fosse um artesão obstinado, perfeccionista e incansável, disposto a começar constantemente de novo, depois de cada derrota. Acredito que, nestes dois anos, tenha havido momentos em que mais ninguém acreditou, se não ele. Sempre com a fome de um viciado pelo jogo, a precisar da próxima partida como de uma próxima dose, como se os dias custassem mais a passar, como se a redenção e a perfeição estivessem sempre ao virar da próxima esquina. Klopp nunca duvidou do que queria e nunca duvidou de que lá chegaria, e é por causa disso que, mesmo que ainda falte muita coisa, este já é um Liverpool como ele. É por causa dessa coragem que, nos últimos dois anos, mesmo com tudo o que se foi perdendo, o Liverpool nunca se fartou de jogar futebol.

Este ano, o destino fez a partida de lhe colocar Guardiola no caminho e é muito por causa dele que esta é uma história provavelmente sem final feliz. É cruel pensar o que joga o Liverpool, e porque joga o Liverpool, e depois perceber que o título é para Mourinhos, Contes e Guardiolas. A vitória de hoje é tanto mais espectacularmente simbólica, por causa disso. Estamos em Janeiro, mas comentei ontem que Anfield era verdadeiramente uma das últimas paragens que podia prevenir que este City reeditasse uma impossibilidade histórica que era ser Campeão Invencível na Premier League. E foi. Mesmo contra o Campeão que vai ser, uma das três melhores equipas do mundo, mesmo a começar a semana a vender a jóia da coroa ao Barcelona e acabá-la a perder o defesa mais caro de sempre, foi, e Klopp superou-se a si próprio, como o treinador que mais vezes bateu Guardiola (6 em 12 jogos), lembrando-nos a todos porquê. Num jogo entre estilos superiores, numa liga superior, acabou por ser, afinal, o carácter extasiante e a pureza da sua imprevisibilidade futebolística a fazer o cheque-mate. Como numa obra-prima de inspiração e improviso, como rock&roll a altos berros, intangível, incontrolável, imparável. Foi um livre-arbítrio numa liga que já estava condenada. Foi uma overdose e foi tão bonito e tão libertador.

Klopp não será campeão este ano e, se calhar, nunca será campeão no chão sagrado de Anfield Road. Mas é uma bênção tê-lo por perto, a lembrar aos extraterrestres o que é ser humano, e a lembrar aos humanos que, numa ou noutra noite das nossas vidas, podemos ser todos extraterrestres, se quisermos jogar de cabeça erguida e se estivermos dispostos a ganhar e a perder, a entrar e a sair de cena, mas sempre pela porta grande. Talvez Klopp seja campeão um dia. Mas se não for, é a tipos como ele que devemos a essência sagrada da Premier League, onde os únicos invencíveis, são os loucos que nunca desistem.

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