sábado, 16 de fevereiro de 2019

Roma: um filme difícil de ver não é necessariamente bom, pelo contrário


Roma é, de forma relativamente adquirida, a sensação da temporada. Desde que surgiu no Verão do ano passado, na espuma dos festivais, seguiu-se um rastro tão estrelar de elogios, que se tornou impossível ignorá-lo. Dos camaradas de Alfonso Cuáron até à cena mais alternativa, jorraram vénias e choveram personalidades a clamá-lo como um dos maiores tesouros modernos, e num ápice, estava estendida uma passadeira vermelha àquele que, porventura, teria vindo a ser um pequeno projecto pessoal de um realizador afamado, com escala em festivais próprios e na corrida a Melhor Filme Estrangeiro. Nalguns meses, Roma tornou-se, contudo, no grande projecto de vida de Cuáron, que se desmultiplicou em entrevistas românticas sobre a tarefa abissal de fazer um filme semi-autobiográfico, falado em dialecto mexicano, a preto e branco, nos anos 70, numa mística que contou de bom grado com a extraordinária máquina de propaganda da Netflix, que acabou a distribuir a película, singular demais para entrar no grande circuito, resgatando à companhia o muito ambicionado bilhete dourado para chegar aos Óscares.

Roma é o filme mais difícil de ver do ano, ainda mais porque o destino ditou que o tivéssemos de ver assim, já condicionados. Se não tivesse sido o imenso hype e a entrada de rompante na temporada dos prémios, este era um filme que 90% do grande público nunca chegaria a ver. Chegando à semana dos Óscares com legítimas aspirações a levar estátuas para casa, depois da vitória de Cuáron nos Globos de Ouro e do próprio filme nos BAFTA, é de uma forma um tanto ou quanto castrada que nos sujeitamos a tentar estar à altura intelectual do projecto de estimação de um realizador famoso, mesmo que esse seja um raciocínio com tudo ao contrário. Procurei ver o filme sem preconceitos, nem num sentido, nem noutro, ou seja, sem hostilizar o frenesim artístico, mas igualmente sem disposição para digerir estatutos só porque sim. Acabou por ser fácil chegar a uma conclusão, porque ver cinema é fácil, gostar de cinema é fácil, e quando ao fim de 35 minutos estamos desesperados pela perspectiva de mais 100 minutos de coma, só mesmo com muita força de vontade é que se leva o passatempo de outros até ao fim.

Roma é o projecto querido de um bom realizador, que chegou a um momento da carreira em que se pode dar ao luxo de experimentar ainda mais do que era costume, e dar palco às suas próprias memórias de infância, falando da cultura, da história e da sociedade do próprio país, um exercício que tem o seu público e muito bem. Nunca fui enorme fã de Cuáron (com execpção para o brilhante Gravity), mas não discuto que há muito dele aqui no bom sentido estilístico, que faz com que Roma seja uma tela delicadamente pintada e bonita. Posso aceitar as nomeações para Melhor Realizador e Fotografia, como não me custa simpatizar com a performance de Yalitza Aparicio (já que Marina de Tavira também seja nomeada, não faz sentido nenhum). Mas Roma é uma história sem história, é estética pela estética, o que faz de si um filme perfeitamente deficitário no que verdadeiramente interessa e pouco há a fazer em relação a isso. Teria sido, talvez, uma excelente short story; como longa-metragem, é uma obra extenuante, mais ou menos deslumbrada consigo própria, com a sua fotografia e com o tempo infinito que tem, relativamente pretensiosa na forma como se sente superior a falar de intimidade e família como se nunca ninguém tivesse falado antes e muito melhor, um marasmo contemplativo de mais de duas horas sem nenhuma notícia relevante, um sacrifício como se estivéssemos a assistir na faculdade a uma aula de realização sem cinema para contar.

Um filme pode ter muitos méritos, muitas camadas, muitas leituras. Mas tem de ser coeso e acessível, tem de ter alicerces e saber o que nos quer contar. Não pode ser, apenas, uma colecção de grandes planos bonitos e de memórias vagamente comoventes, como se elas valessem por si só. Foi um erro fatal achar que o argumento é descartável, porque é ele que dialoga com o público, e que o conduz, desafia, seduz e converte. Vamos ver cinema, e cinema tem de nos arrebatar em vez de anestesiar, tem de nos projectar ali, compadecer, fazer reflectir e dar vontade de rever e de reviver aquela história. Por mais visualmente lírico que seja, se há coisa em que o filme falha é no vazio argumentativo, e na responsabilidade de chegar a toda a gente, convencido de que o facto de ser tão híbrido, caprichoso, peculiar e inacessível, é suficiente para ser especial. Não é.

5/10

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