Às vezes, parece-me que há no cinema, na produção artística em geral e em muitos outros aspectos da nossa vida, uma necessidade quase sôfrega de fazer o que ainda não foi feito, e sair da caixa de tal modo, que é quase como se o único mérito de um trabalho fosse descobrir o Santo Graal sozinho. Tentar reinventar a roda é, como o próprio nome indica, uma fórmula normalmente destinado ao fracasso, e um bom criador de cinema não deve criar para si, deve criar para os outros, divertir-se a criar para os outros, conhecer a audiência e saber o que funciona. Podem-me dizer que fazer cinema simples é das coisas mais difíceis que existe e, nesse caso, serei obrigado a concordar. É por isso que, no fim de Vice, apetece dar um abraço ao Bale, ao elenco todo e ao Adam McKay por duas horas genuinamente bem passadas. Vice é um espectáculo, é o espectáculo da política e na performance, é um produto mundano, cheio de energia e parco em complexos, desavergonhado nas fórmulas e nos atalhos, provocador mas sempre cativante, inescrupuloso, mas sempre sedutor, bem feito e interessante.
É curioso que terá sido dos principais filmes em termos de buzz na pré-temporada, pelas olímpicas e intemporais deformações corporais desse mutante chamado Christian Bale, e pela proposta de abrir uma caixa de pandora chamada Governação Bush das entranhas para fora. No entanto, o filme foi-se desvanecendo numa receptividade tépida da crítica, normalmente muito avessa a estes vícios dos comuns mortais, ao ponto de as nomeações para os Óscares terem parecido quase um favor ou uma sorte. Nada mais injusto.
Vice concorre com Bohemian Rapsody para melhor entretenimento do ano, mas não no sentido folclórico do termo; é entretenimento de alto quilate porque é inteligente, é carismático, é bem escrito e bem realizado, é um filme que podia durar mais uma hora, porque teria sempre mais alguma coisa para contar e nós teríamos todo o gosto em ouvir. Trata-se de uma conceptualização verdadeiramente primorosa por parte de Adam McKay (vencedor de Óscar para Argumento Adaptado com o excelente The Big Short), no argumento e na realização, a fazer lembrar muitas vezes o estilo da dupla Sorkin-Schlamme nos tempos áureos de West Wing, walk-and-talk smart-and-funny, ao que não será alheio o passado de McKay na televisão, na direcção de argumento de Saturday Night Live.
É difícil fazer cinema fácil e esse é o pretexto perfeito para celebrar este autêntico banquete de ases pelos ares, que quase se chega a confundir a espaços com uma grande reportagem, tal a vertigem noticiosa, o grafismo, o maquiavelismo, as curiosidades, os segredos, a qualidade narrativa e, claro, a verdadeira passadeira vermelha de estrelas que invade a sala. Bale não é superlativo por ser Bale, nem por ter engordado 30kg outra vez, mas também. Porque isso se enquadra tão bem no excesso e na luxúria do filme, porque ele vai mais longe do que qualquer outro iria a vestir Dick Cheney, e porque isso, porventura, não estaria ao alcance de mais ninguém. Há actores que são como um velho e infalível seguro de confiança, e Christian Bale é um desses tipos irrecusáveis. Com ele, confirmamos até nos pequenos maneirismos, nas absurdas mudanças de dicção e no sorriso provocador de sempre, porque é que vale a pena ir.
Não é a performance individual do ano, nem a sua melhor de sempre, mas seria com toda a certeza para outros, o que acaba por dizer quase tudo da sua carreira. Steve Carell é, por seu lado, o secundário que qualquer um quereria ter e, apesar de prezar o Bush de Sam Rockwell, é bastante injusto que não tenha sido ele a selar a nomeação deste ano. O seu Donald Rumsfeld é quem lidera o resto de um elenco completíssimo e sempre capaz de fazer a diferença, com uma performance entusiástica, naquele seu truque de falar a verdade a mentir que lhe vai construindo a merecida reputação em Hollywood.
Em suma, Vice é muito mais do que o filme sobre a Governação Bush em que Christian Bale engordou até ao limite. É um filme vibrante, cru e inteiramente amoral, que, apesar dos seus temas, dos seus protagonistas e de todos os seus galões, comete a proeza de nunca ser presunçoso. Adam McKay quis fazer uma alegoria à sede de poder, o supremo onirismo de todos os homens, e escolheu uma grande história para fazê-lo. Mais perto da televisão que do cinema, não se perdeu com distracções desnecessárias e concretizou o que prometeu sem querer salvar ninguém, nem consolar a nossa própria inocência.
8/10
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