quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

O último romântico


Daqui a 20 anos, ninguém vai saber quem foi Riquelme.

O futebol terá continuado a ser maior e mais rápido, teremos sido todos bombardeados pela quarta revolução digital e a memória não vai ser o que nos lembramos dela hoje. Saberemos tudo de todas as coisas e não teremos remédio a não ser transformar de vez a bola em números. Os golos, as assistências, as finais, os títulos, os recordes. Só nos sítios em que milhões estejam a ver, como é óbvio. Nos estádios potentes da Emirates e da Etihad que, na altura, talvez até já flutuem, quais naves futuristas, como as donas que lhes darão o nome. O pós-apocalipse não tem necessariamente de ser a construção sobre a destruição. Pode, tão só, ser a descolagem final de um paradigma. Daqui a 20 anos, ninguém vai poder saber o que foi Riquelme. Não conseguirão compreender que bicho raro era aquele, que não podiam medir, cronometrar, somar ou subtrair. Como em qualquer pós-apocalipse, haverá, porém, uma Resistência. Um Distrito 13 qualquer. Se nesse mundo houver realmente um exílio que valha a pena, eu, pelo menos, começava a procurar em Buenos Aires.


Imagino-me a vaguear indistinto por aquelas ruas sujas de carisma da que um dia chamaram Paris Latina. A deixar-me envolver com cada mural pintado, com cada músico de rua e com o calor do Atlântico Sul a beijar-me a cara, até ser forçado a parar, de repente, num empedrado qualquer, por dois miúdos a correrem, quais socorristas incumbidos da grandíssima tarefa de ressuscitar uma bola de catchu, relíquia há muito esquecida no tempo. Seja em que época for, qualquer pessoa de princípios saberá que é inevitável esse caminho desembocar na maior catedral da cidade, até se, nesse futuro distópico, já a tiverem desmanchado num Coliseu qualquer. Acredito que, até ao fim dos tempos, qualquer um que se aproxime da Bombonera sentirá no peito o rumor de todos os milhões que lá choraram, sangraram e fizeram tremer o chão. Na esquina seguinte, na parede em que El Diego está coroado com a boina de Guevara, saberei instintivamente que é a minha vez de sibilar, qual oração. Si yo fuera Maradona, viviría como él.



Na periferia da Bombonera, parece-me evidente que todas as Cervecerías são Jardins do Éden, em que o néctar sagrado derrama de nascentes para nos lavar a alma. Entro numa e vou-me sentar ao balcão, como mandam as regras. À meia-luz da tarde, um tango de Gardel estará a ecoar em fundo, enquanto, mais perto, um rádio mui antigo, de caixa envernizada e válvulas pulsantes, lembrar-me-á, de lágrima no canto do olho, dos relatos de Victor Hugo Morales. Fiz de propósito. Mal cheguei, sentei-me ao lado de um velho contador de histórias, daqueles que reconhecemos pela cara, daqueles que têm o mundo para nos contar. Toda a sua expressão se ilumina, pois, quando lhe faço a pergunta irreprimível: quem foi, afinal, Juan Róman Riquelme? As melhores pessoas do mundo são os contadores de histórias.


Ainda não disse uma palavra sobre o futebolista e já escrevi metade do que era preciso. Riquelme não foi um futebolista. Foi o espírito de um tempo e de um lugar, o guardião de um escudo e de uma maneira de estar e de jogar, o coração de uma cidade. Sempre no seu jeito tão altivo e grave, tão abnegado, de carregar o mundo às costas. Chamaram-lhe, um dia, o Maradona triste. Se é verdade que o futebol foi-lhe cruel, condenando-o a que o planeta nunca fizesse jus ao seu talento e à sua dimensão mística, uma verdade subsistirá até ao fim: na sua Buenos Aires foi feliz. Nunca voy a poder devolver todo lo que los hinchas me dieron. Adorado como um deus no meio de um panteão. El otro día vino un hincha al entrenamiento, me pidió permiso y se sacó la remera. Tenía los brazos tatuados con mi cara, yo no lo podía creer. Foi embora, voltou. 14 anos no Boca. 5 campeonatos, 3 Libertadores, 1 Intercontinental. 4 vezes Jogador Argentino do Ano. Um conto de fadas, até ao dia em que o traíram na sua própria casa. No ano passado, Daniel Angelici, o presidente do clube, fechou-lhe as portas por achar que a era de Román estava enterrada. O bairro de La Boca abeirou uma guerra civil por sua causa, ele, no entanto, entregou as armas. Nunca teria coragem de ser o motivo de uma. Angelici es el presidente del club. Yo soy bostero de verdad. No sé cuántos hay en la dirigencia de Boca, disse emotivamente, partindo. Foi jogar para a 2.ª Divisão, no Argentinos, pela razão mais simples do mundo. A mesma que o levou a reformar-se agora, assim que o clube subiu.
Yo de chiquito soñaba jugar un partido en La Bombonera. Tuve suerte, desde el primer partido que jugué, frente a Unión, la gente me ovacionó. Yo amo a este club. Cuando me pongo la camiseta de Boca no me pongo cualquier camiseta, me pongo mi camiseta. Soy bostero y voy a morir bostero. Ahora seré hincha, sufriré con Agustín [o filho]. Yo no puedo jugar contra Boca.

Riquelme foi o maior jogador que menos vimos. O seu falhanço no Barcelona de Van Gaal, onde chegou com toda a ilusão do mundo, no Verão de 2002, deverá para sempre ser lembrado como uma das maiores perversões da História do Jogo. Podiam ter sido tão felizes, os dois. Mas não era para ser. Formou-se no Argentinos, glorificou-se no Boca, falhou no Barcelona e emergiu para a segunda vida numa terra pequena, que fez muito grande. Uma jornada à imagem e semelhança do deus que tantas vezes disseram suceder. Quando a pomposa Europa dos Campeões lhe fechava a cara e lhe afiava a guilhotina, Román descobriu que, mesmo nesse mundo impessoal, desapaixonado e vampírico, ainda havia, afinal, gente por quem lutar. Uma cidade com 51.367 pessoas, na costa da Comunidade Valenciana, de cara virada para o sol do Mediterrâneo, foi um refúgio melhor do que o céu. Vila-Real. Um clube que tinha, então, 4 épocas de primeira divisão veio a fazer, com ele, um 3.º lugar e uma meia-final da Liga dos Campeões. Acredito, até hoje, que só funcionou porque ali também se vestiam o amarelo e o azul. Afinal, um tigre não consegue jamais despir as suas riscas.


Se há uma imagem que lhe marca a carreira é a dessa meia-final da Liga dos Campeões 2006. No El Madrigal, no último minuto da segunda-mão. A glória que a Europa lhe assaltou a vida toda, à distância de 11 metros. Um penalty que podia ter reescrito um jogo, um prolongamento, uma final e uma carreira. Falhou. Riquelme foi o anti-herói até ao fim. Longe da ribalta, longe do glamour, longe da globalização dos troféus maiores. Falhou esse pontapé, sim, mas se há uma verdade dessa noite é que nenhum dos 22 mil villarrealenses que lá estiveram teria trocado o seu legado por essa final. O privilégio de desfrutá-lo durante aqueles anos será, para sempre, a maior vitória das suas vidas. Anos depois, ele fez a formalidade de relembrá-los de que tinham estado sempre certos. Quando o clube desceu, em 2012, Riquelme não hesitou e ofereceu-se para ir jogar na 2.ª Divisão, assim lhe pedissem. He pasado años increíbles ahí, he disfrutado mucho. Cada año voy de vacaciones a Villarreal porque sigo teniendo mi casa ahí. La gente me trata con el mismo cariño de siempre y la realidad es que cuando me necesiten yo voy a estar siempre a disposición de Villarreal. A fidelidade não tem preço, a gratidão não tem lugar.



Juan Román Riquelme. Román, de romance. De um futebol apaixonado e apaixonante, do coração à ponta das botas. Pé direito, chuteiras sempre pretas, porque o jogo é mais simples do que parece. A receber, rodar, pausar e lançar com controlo remoto. A descer pelo campo, meneando entre cada adversário, um braço ligeiramente levantado a proteger-se, como que a pedir-lhes clemência quando, na verdade, sabia bem que a bola ninguém lha poderia roubar. O recital que faz do futebol a 8.ª maravilha do mundo, com a bola pegada ao pé, como se fossem siameses cósmicos, até inventar-lhe, delicadamente, uma elipse invisível. Sempre um compasso abaixo do resto do mundo, no seu próprio fuso horário, pois os outros que se gastassem em correrias imbecis, que não nasceram com o dom da adivinhação. Yo en la cancha veo todo.

Um mago, um poeta, um grande artista, o último 10, em cada vírgula, em cada caneta, em cada pirueta, em cada canhão. Um sobredotado que já nasceu para fazer da bola uma utopia para quem a inventou. Um profeta que nunca desdenhou o seu destino hercúleo, consciente de que ser um génio é o fardo mais solitário do mundo. Um ídolo porque imperfeito, falível e, sobretudo, pela pertença. Pela identidade. Riquelme não foi uma pop star, não foi de toda a gente. Foi das suas pessoas e isso bastou-lhe sempre, mesmo que na América do Sul ou num pequeno vilarejo europeu. Esse é o futebol único que ameaça morrer com ele, porque a globalização mata-nos aos poucos. Pensar, por estes dias, no tão pouco que vimos dele, é um atentado intemporal. Nas vezes que o reduzimos a fintas do youtube ou a golos de domingo à noite, só porque ele não andava nos sítios de bem. Nos Bernabéus e nos Old Traffords deste mundo. O que perdemos.

A verdade é que nunca estivemos à tua altura, Román. Que daqui a 20 anos não tenhamos morto para sempre o teu futebol.
La pelota me lo ha dado todo. Así como las muñecas son lo más lindo para las nenas, para mí la pelota ha sido el juguete más hermoso que pudo existir. El que la inventó es un verdadero ídolo, el más grande de todos. Ojalá la gente haya disfrutado de cómo jugué. Yo intenté pasarla bien.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

American Sniper. Escandalosamente mau


Custa a acreditar no quão mau consegue ser.

Não é a ideologia, não é a política, não é, sequer, a propaganda espectacularmente vomitável: é a vulgaridade. A estupidificante simplificação. American Sniper é um filme para bruto ver. Parece quase miraculoso que se consiga, por ora, esboçar sequer duas frases seguidas, tal a tacanhez imbecil de cada um dos seus pormenores. É, sem esforço, um dos argumentos mais infinitamente maus que já presenciei, um lixo tão deprimente que devia fazer o autor fechar-se em casa, numa quarentena de vergonha. É um filme para o cowboy estúpido, que não balbucia mais do que três palavras por dia e cuja vida se resume ao Deus, Pátria e Família. É um filme tão unidimensional, tão bacoco e tão idiota, que corria o risco de estar ultrapassado se tivesse estreado há 30 anos atrás. American Sniper é das piores coisas que vi na vida. O único terrorismo que ali está é a sua própria existência.

Repare-se que as minhas expectativas não estavam altas. Estava consciente da orientação e tinha lido as críticas: Clint Eastwood está a fazer um fim de carreira como despudorada bandeira Republicana e o filme fora acusado quase transversalmente de ser mais propaganda do que cinema. Mesmo assim, não queria acreditar no que tinha acabado de ver. American Sniper é escandalosamente mau. Tem a complexidade de uma história para um miúdo de 4 anos e é uma enciclopédia de clichés. Estão lá todos, no contexto situacional, na caracterização das personagens, nos diálogos. É uma indigestão cinematográfica. Cada minuto de American Sniper é um atentado à sétima arte, é uma exposição radioactiva para o QI de um ser humano normal. 

Só há uma coisa que não concordo em relação às críticas ao filme: que é propaganda por excelência. Primeiro, porque American Sniper não tem rigorosamente nada de excelente. Depois porque sim, aquilo é propaganda, mas propaganda de quinta categoria. Aquela propaganda de sarjeta, apalhaçada, barulhenta e embaraçosa, que acredito que só possa constrangir os próprios partidários. Nada impedia que Eastwood fizesse este filme do Iraque com toda a conotação que sente a seu respeito; só se suplicava era que contasse uma história, que, pelo menos, tentasse! falar das pessoas, dos dilemas e do contraditório. A própria comunicação política é uma arte que se afiança numa única regra basilar: a credibilidade da mensagem. Ou, pelo menos, no esforço de credibilidade. Dizer a "nossa" verdade, sim, mas encarar as zonas cinzentas, fazer o mea culpa. Em pleno 2015, contudo, os Óscares indicam a Melhor Filme uma coisa que já seria embaraçosamente ultrapassada a meio do século passado. É, com grande probabilidade, um dos piores nomeados de todos os tempos. 

American Sniper é mau em tudo... o que me custa ainda mais dizer, ou não fosse Clint Eastwood uma das minhas referências de sempre. Million Dollar Baby, Mystic River, Unforgiven, Gran Torino. A lista é interminável. É, por isso, tanto mais agreste vê-lo às portas dos 85 anos a fazer coisas destas. Tão, mas tão menores do que a sua sombra. A realização é banal, redundante, sem uma única grande cena. Quase desleixada e, ainda por cima, incólume à edição. Bradley Cooper, na fase mais gloriosa da carreira, é como um comboio de alta velocidade a desmanchar-se contra uma rocha. Um tipo tão bom e em tão boa forma, forçado a capar o próprio alcance interpretativo para fazer um protagonista tão quadrado. Mas o pior de tudo, como suspeito que já tenha deixado perceber, é o argumento adaptado de Jason Hall. Tendo em conta que já queimei os adjectivos quase todos, resta-me deixar uma ideia mais ressonante do que eles: Gone Girl, de David Fincher, falhou tanto a nomeação a Melhor Filme, como a Melhor Argumento (!!!), em benefício de American Sniper. Vejam os dois e sintam o que é ter realmente vergonha de uma coisa que adoram.

American Sniper é um insulto. Não percam dinheiro, não percam tempo e conservem um perímetro de higiene.

1/10

domingo, 25 de janeiro de 2015

The Grand Budapest Hotel. O gosto de ir à aventura


Nunca tinha visto Wes Anderson e não era uma prioridade. Ouvira a filmografia peculiar, o humor de autor, a dedicada composição, mas sinceramente não tenho por hábito ficar fã de ninguém muito absorvido e, portanto, a desconfiança era de bom senso. Não teria realmente sido para já não fosse a avalanche de nomeações. A temporada dos prémios é, de resto, tantas vezes perversa, cometendo esquecimentos imperdoáveis e chamando a atenção para quem não a merece de todo. The Grand Budapest Hotel é, no entanto, um feliz exemplo contrário. Carismático, entusiástico, com cor, humor e envolvência, é, na verdade, uma das surpresas mais agradáveis do ano.

É um filme sobre a história de um livro, obra de um velho caminhante que explica, logo nas primeiras linhas, o seu segredo: que os grandes enredos não assomam à mente dos melhores escritores por decreto de uma criatividade permanente; pelo contrário, os melhores são aqueles que conservam, ao longo da vida, a capacidade tão só mundana para olhar e para continuar a escutar atentamente. E, no fim de contas, são as próprias histórias que vão ao seu encontro, não eles que as têm de ir fazer. The Grand Budapest parte da atraente proposta de que a sua crónica, mesmo que de um hotel aparentemente fictício, numa república imaginada, foi, afinal, verídica num tempo e habitada por gente de carne e osso, ainda que já só viva na mente de um velho contador de histórias.

É, no essencial, um relato das venturas e desventuras de um icónico concierge - Monsieur Gustave -, mestre de um estrelar hotel de estância, numa palaciana república centro-europeia da primeira metade do século passado. Acho que o trailer não lhe fazia jus porque, tal como esta descrição, correu o risco de cingi-lo. Ainda que centrado nas quatro paredes do hotel que lhe dá o nome, The Grand Budapest não se reduz, todavia, às peripécias da vida quotidiana com um trago de humor; é um filme largo, que excede definitivamente esse espaço físico, tanto na acção, como no simpático alcance das suas personagens. A história funciona em flashback - começa com um misterioso cavalheiro a versar as suas memórias ao jantar, com o hotel já decadente -, tem passado, enquadramento histórico e tem tanto mais carisma por causa disso. Ganhei, de facto, um franco respeito pelo trabalho de Wes Anderson. Da câmara ao argumento (o travo ácido dos diálogos é uma assinatura deliciosa), é um criador tremendamente coeso, muito elaborado e muito fiel à sua visão, sem nunca ser pretensioso ou cansativo. Pelo contrário, é isso que lhe emprega aura, fazendo com que brote naturalmente um produto colorido, alegre e cativante. The Grand Budapest é um conto puro, uma aventura com personalidade, que acompanhamos a gosto, peripécia a peripécia, com aquela curiosidade que nos costumava mover em crianças.

No plano interpretativo, e por entre um elenco riquíssimo, Ralph Fiennes também sobressai como uma das agradáveis notícias da temporada, num registo bem distante do que está habituado a fazer. A forma engalanada como se comporta, levemente delirante, é teatral, mas acerta em cheio na disposição, e nunca é uma caricatura. Não é o seu registo, não era fácil ser fiável e, no entanto, é uma personagem que se vem a entranhar de bom grado. Muito justa a nomeação ao Globo Musical/Comédia. Destaco, igualmente, as prestações juvenis: Tony Revolori encaixa como uma luva no ritmo acelerado, cómico e conceptual do boneco, tendo sido uma óptima escolha de cast; Saoirse Ronan, nomeada da Academia em 2008, aos 18 anos, já é outra certeza. A óptima presença e a sua graciosidade intensa permitiram-lhe, sem esforço, dominar o papel.

The Grand Budapest Hotel é nada menos do que o digníssimo campeão de nomeações de 2015, somando nove, onde se incluíram Filme, Realizador, Argumento Original e Cinematografia, qualquer uma delas honestamente merecida. Não é um filme inesquecível, mas é prazeroso e, seguramente, um dos mais interessantes do ano.

7/10

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Boyhood. Porque é que Linklater é um dos maiores da História, porque é que o filme não é


Não consigo medir o quanto gostava de ter gostado de Boyhood.

Foi, desde o momento do anúncio e até ao último dia, o meu favorito. Era um daqueles que estava escrito, uma aposta com tamanha garantia, que o fui deixando ficar, tão certo que estava da fidelidade do produto final. Era, de uma vez por todas, a inalcançável Bola de Ouro de Richard Linklater, depois de tantos anos na sombra indie, depois de já ter dado mais ao cinema do que o cinema lhe poderá um dia dar. Vi o Before Sunrise numa madrugada que já ia longa e, com aquele fascínio de quem vê uma obra-prima com os próprios olhos, tanto mais estremunhado por nunca terem estendido àquilo passadeiras vermelhas, champagne e estátuas preciosas, vi nessa mesma noite o Before Sunset, até o sol me começar a nascer. Se estão a ler isto e nunca os viram - elogio profundamente estendido a Before Midnight, no ano passado - espero que parem agora e se façam à vida.

Richard Linklater cometeu a alucinação de filmar Boyhood durante 12 anos - doze -, uma semana de cada vez, para fazer não com que o cinema se parecesse mais real... mas que o fosse mesmo. Isso é o que já todos devem saber sobre o favorito aos Óscares de 2015. O que talvez não saibam é que, para inventar o romance mais supremo que o cinema já viu, para que a sua trilogia fosse boa que chegue, já ele demorara... 18 anos - DEZOITO - com os Before. Disse ele, por estes dias, que "se o cinema fosse um quadro, o tempo seria a sua tinta." Linklater tem tudo: ideário, escrita, técnica, bom gosto e sensibilidade. E tem, sobretudo, algo que não se aprende, algo que já tem de nascer connosco: um desígnio, e o génio e o compromisso necessários para levá-lo a cabo. Como é que não se idolatra um gajo assim?

No fundo, espero honestamente que ele ganhe o Óscar, como ganhou há uma semana o Globo de Ouro. Porque o universo é perverso e escreve certo por linhas tortas. Porque toda a gente deve chegar ao lugar que lhe pertence e porque, algures no caminho, ele conseguiu, afinal, romper o binómio espácio-temporal que cronicamente separou a sua filmografia daquela que ganha prémios. Seja qual for o palco, nunca poderei ter uma objecção à celebração de alguém como ele. É como ver Aaron Sorkin, deus maior da televisão americana, colher o reconhecimento final com um filme como The Social Network. Ou McConaughey passar à História com Dallas Buyers Club. No fim, contarão as grandes exibições e os prémios, não necessariamente as que aconteceram a par e passo. O que nos leva à questão, admito que ostensivamente subjectiva: onde é que Booyhood falhou?

Desde logo, é discutível que tenha falhado. Está na categoria de filmes de tal assombro, com tão espectacular sustento, que se pode dar ao luxo de que cada um decida esta resposta religiosamente por si próprio. Forço-me a começar pelo melhor: estilisticamente, é um filme esmagador. Irrepetível. Emprestar 12 anos de devoção a tecer seja que obra for seria sempre impressionante; num meio tão imediatista e tão volátil como o cinema, é honestamente indescritível. À parte todo o enquadramento, a direcção de Linklater é inatacável, como sempre. Pacífica, angular, delicada, cheia. Completamente adequada a tudo aquilo que o próprio idealizou. Bem na cor, na luz, bem nos tempos em que deixa a acção respirar, pensar, em que nos incentiva a sorver. Mais uma banda sonora à altura do que se pretendia.

Acho que Boyhood deve obrigatoriamente ser visto. O que me parece é que só será visto uma vez. Por esta altura, acho que já deixei claro o meu posicionamento em relação ao realizador e a minha admiração em relação à ideia. O que não acho é que Boyhood funcione como produto cinematográfico. É uma experiência espectacular. Ambiciosa, total, ora graciosa, cativante. Mas, ironicamente, toda ela se desvanece no próprio teste do tempo que a torna possível. Boyhood é uma injecção de 3 horas com a qual é demasiado difícil identificar-se. É o tal álbum da adolescência, sem pontos muito altos, nem demasiado baixos, no fundo, tão idêntico à vida real, na forma e no conteúdo, que acaba por ser idêntico demais. É um filme totalmente contemplativo, de tal modo absorvido e encantado pela sua própria aura dormente que, quando chegamos ao final, damo-nos conta de que não conseguimos sintetizar quase nada. No fim de cada filme, faço sempre a mesma pergunta primordial: vê-lo-ia outra vez? Todos os melhores filmes jamais feitos são intemporais. São irresistíveis por instinto, porque catárticos, inspiradores, porque mesmo à enésima vez podem-nos contar algo que nunca tínhamos percebido. Ou reafirmar ou fazer-nos ver, se já estivermos preparados. Boyhood acaba nos créditos. É um filme espectacularmente ambicioso, geneticamente gigante, mas não vive para lá de si próprio. 

Tudo isto é absolutamente subjectivo. Para mim, todavia, a falta de estrutura narrativa que o torna diferente, é a mesma que consuma o seu falhanço. Seinfeld apresentava-se como uma série sobre nada, porque dizia que o dia-a-dia não tem moral da história. Que a vida é como é, feita de pequenos episódios, nunca de grandes argumentos. Suponho que o cinema não tenha de ser exactamente como a vida. Aquelas duas horas não deviam condensar uma adolescência, deviam reflectir sobre ela. Articulá-la, assimilá-la e, no fim de contas, serem as guias dessa jornada suprema que um dia fizemos sozinhos. Boyhood demite-se desse intento. É tão ambicioso na ideia, como fatalmente egoísta na concretização, tornando orfã a relação com o espectador. Distante, sedada, impessoal, finita. Quem sabe, daqui a 10 anos serei eu a olhar para o filme de maneira diferente. Ele continuando igual, eu porque talvez tenha mudado. Hoje, com todo o apreço que me merece, não é esse dia. 

6/10

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Whiplash. Doentiamente, genial


É adrenalina, mas em overdose. Uma pulsação pasmante, agonizante, incontrolável. Um ataque de pânico qualquer. É para acabar de ver e procurar a bomba de ar mais próxima, qualquer coisa que evite a taquicardia que por essa altura deverá estar iminente. Whiplash é um monumento, tão doentio quanto genial. Pensem num filme em contra-relógio. Pensem num drama realizado como um filme de acção. Sem tempo para pensar, só para sofrer e tentar respirar pelo meio. Em Whiplash, cada minuto foi idealizado para ter um efeito, para provocar uma reacção. É, sob todas as metáforas possíveis, um portentoso trabalho de orquestra, uma 5ª sinfonia possuída por um demónio acordado 1 hora e 40 minutos. O mais espantoso não é a intensidade, é o tempo que ela dura. Whiplash é um concerto esmagador para ovacionar de pé.

O léxico da introdução não foi escrito por acaso: a fusão de fórmulas, no filme, é realmente fascinante. Whiplash conta a história de um aspirante a músico, um baterista clássico na mais exclusiva de todas as escolas, aquela onde todos queriam estar, morada do homem que todos sonhavam impressionar. Um psicopata visionário, capaz de tudo para que os seus alunos desvendassem o seu verdadeiro potencial. Não é, de todo, comum encontrar uma peça fílmica tão incrivelmente coesa, isto é, uma realização que comungue tanto, pela forma, a mesmíssima narrativa que trata como conteúdo. Não é comum e não me parece que seja muito possível. Mas olhamos para Whiplash e vemos não um, mas dois ou três canais a contar a mesma coisa. A música - bendita sonorização, bendita banda sonora -, a electricidade e a exaltação, na trama, nas performances e na realização. Whiplash é um produto realmente excepcional. Honra e glória de um puto chamado Damien Chazelle, 29 anos, que inventou, escreveu, realizou, dirigiu e tudo o mais que lhe queiram creditar. Que tenha falhado os Globos de Ouro é aberrante. Que possa falhar os Óscares, uma tragédia. Damien Chazelle é o melhor realizador do ano. Lembrem-se do nome.

Os melhores filmes têm o hábito perverso de sugerirem que foi tudo fácil. A um texto fantástico, a uma realização brilhante, juntaram-se ainda duas daquelas performances para nos sentarmos e agradecermos. Para querermos pagar o bilhete. Miles Teller é um fenómeno. Muito poucos actores na casa da vintena de anos conseguem inspirar aquele respeito, aquela seriedade natural, tão comprometida com o papel, que logo nos esquecemos da idade, porque ele ignora esses teoremas e obriga-nos a concentrar-nos somente no que ele está a fazer. Era um papel que, nas mãos de outro, poderia facilmente ser cansativo, desgostoso, pouco crível. Não com ele. Teller faz ruir o ecrã com uma performance própria de um colapso nervoso, sempre em agonia, sempre no limite, na hipertensão e na superação. A sua jornada é uma droga, uma proposta irrecusável que nos cola ao ecrã de olhos tão arrebanhados como Kubrick um dia imaginou a sua Laranja Mecânica. As pistas estão todas aí. Não será este ano, mas a glória é só uma questão de tempo.

Para JK Simmons, por sua vez, já tem mesmo data marcada: 22 de Fevereiro de 2015. Após embrulhar toda a temporada dos prémios, será esse o dia de reclamar o seu inevitável e inquestionável Óscar. Um longo caminho percorreu ele, da histórica figura paternal que aprendemos a acarinhar em Spider-Man e até em Juno... mas que aqui, mais do que reinventar-se, transforma-se verdadeiramente, tão negro como o traje de que não abdica, concebido algures entre um manicómio e o Inferno. Simmons é um filme de terror dentro do próprio filme, uma figura que nos inspira realmente medo, por mais distância que queiramos manter. Não há ali nada empático, nada redentor, nada que nos vá surpreender. Simmons é todo ele a raiz do mal, multiplicando cena sobre cena a um nível quase inalcançável. Um verdadeiro recital.

Whiplash é das surpresas mais sensacionais a que vão assistir este ano. Não chega saberem que é bom, porque não vão estar inteiramente preparados para o que verão a seguir. Que haja justiça no mundo e que o dignifiquem amanhã com a Nomeação a Melhor Filme.

8.5/10

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

O que não nos mata


Há exactamente dois anos, escrevi aqui aquele que viria a ser o meu texto mais lido de sempre. Essa podia ter sido uma segunda-feira qualquer, não parecesse declaradamente ferida por um abismo da História. O planeta resfolgava no frenesim dourado já típico da segunda semana de Janeiro, mas para uns tantos era dia apenas de mais uma fatalidade anunciada. Messi ganharia a sua 4ª Bola de Ouro e bom era que todos nos conformássemos com isso, mesmo que olhássemos a custo para o ano que ficara para trás e o asco nos engolisse vivos, com aquele impulso de um miúdo que vai ser injustiçado por um professor e que sabe que não há nada a fazer. Ronaldo alcançara nessa época o que na meia década que o antecedeu parecera puramente irrealizável: bater o Barça, quebrar o tiki-taka, ganhar a pulso um jogo que o único rival tivera viciado. E, no fim, não chegara. Nesse dia, pareceu certo nunca ir chegar. Mais do que em revolta, lembro-me de olhar para essa inevitabilidade da derrota com desolação. Fizemos tudo o que podíamos, miúdo. Todavia, pensei eu, na vida há jogos que não podemos realmente ganhar. Lembro-me de ter aceite, de não ter mais nada a dizer, de nenhum argumento valer ainda a pena perante a grosseira evidência das circunstâncias. Até que parei num directo da SIC.

Com a passadeira vermelha de Zurique em fundo, Nuno Luz perorava sobre a infimidade das nossas hipóteses, num fado triste e pachorrento para conservar a longa emissão ligada às máquinas e servir-nos a morfina, antes do nosso destino terminal. Honestamente, não lhe estava a prestar muita atenção, até que, na praxística revista de imprensa internacional, ecoou o seguinte: "alguns colunistas acreditam que Ronaldo tem uma hipótese... porque Messi tem três Bolas de Ouro e a 4ª já não teria muito significado." Nesse momento, foi como sentir veneno na alma. O impulso de expiá-lo pela ponta dos dedos foi, tão só, inevitável. Ao fim e ao cabo, aquilo já não era sobre ganhar ou perder uma Bola de Ouro outra vez. Aquilo era um fim da História nele próprio. O melhor futebolista desse ano, nessa sabotada luta titânica, não só ia inevitavelmente voltar a perder, como ia ter de assistir a que lhe condescendessem essa derrota. A nós, restava admitir, sucumbir envergonhados àquele destino cáustico que outros lhe tinham escrito. É nessas alturas que percebemos que, no limite, a vida é um KO. Que não são os outros que nos vencem, somos nós que perdemos. E que perder é só uma opção. Que se nunca deitarmos a toalha, então o jogo não pode realmente acabar. O jogo acaba quando e como nós quisermos. Se não hoje, pois amanhã. Orgulho-me de muitos textos que escrevi, mas esse é definitivamente especial. 

Nesse dia, o Ronaldo perdeu, de facto, a Bola de Ouro. Orgulhava-me mesmo se ele tivesse continuado a perder, orgulho-me mais porque acredito que esse dia é a razão de termos voltado cá hoje. Se o que não nos mata torna-nos sempre mais fortes, Ronaldo é a materialização estatual de Nietzsche. Discutir o quão bom ele é realmente é dos passatempos que mais gozo me dá. Discutir o quanto é ou não um dos melhores de sempre, qual é, afinal, o seu alcance futebolístico, o que é que oferece ao futebol do Real, se ainda vale a pena ver. A ironia que muita gente ainda não percebe é que a eternidade de Ronaldo não se medirá nas fintas, nas assistências, nas vitórias, nem no demencial número de golos que marcará até ao fim da vida. Quando daqui a 30 anos olharem para trás, no que não vão acreditar é na alma daquele cabrão. Na anormalidade competitiva, na obstinação pela excelência, na mentalidade olímpica. Na necessidade instintiva de fazer mais todos os dias, de ser espectacularmente melhor todos os anos. Quase todos os que se cruzaram com ele, dizem que Ronaldo foi o profissional mais excepcional que conheceram. Mas Ronaldo não é profissional nenhum, porque o profissionalismo é uma história de esforço, disciplina e sacrifício. Ronaldo não sofre para ser melhor, pelo contrário, transcende-se por isso e por causa disso. Alimenta-se, respira e precisa disso. Os profissionais falham, fartam-se, acabam. Ronaldo é para sempre. Se me perguntarem se é o melhor jogador de todos os tempos? Não é. Mas é o mais próximo que o jogo já esteve de um super-homem. Os seus números são uma nota de rodapé se comparados ao tamanho da sua mentalidade. 

Quando daqui a 30 anos olharem para trás, no que não vão acreditar é no tamanho do exemplo. E vão à merda com cada um dos vossos lirismos e preconceitos, Exemplo sim senhor, com letra grande e para o dia-a-dia, por mais que os seus excelsos contemporâneos preferissem avaliar-lhe a forma e o feitio e achassem que não se pode aprender nada com o futebol. Com um gajo que nunca teve uma fácil e, pior do que nunca ganhar um favor, que ainda fizeram questão de humilhar, antes de, pelo próprio pulso, provar-lhes a todos que se o quisessem matar, então iam ter de querer muito, mas muito mais do que ele. Um exemplo sim senhor, para quem se levanta todos os dias e professa o "somente o necessário". Para quem o mais ou menos é mais do que suficiente. Para quem acha que tem azar, para quem se anula à sombra da primeira pancada e para quem volta para casa, ao fim do dia, muito ocupado a ter pena de si próprio. Fomos feitos para querer sempre mais. Para sermos melhores do que as nossas expectativas. Para sermos superlativos seja qual for o nosso lugar, para gostarmos de fazer bem e para ter brio em ver bem feito. Fomos feitos para ter uma porra dum sonho e para que ninguém nos diga onde raio é que podemos parar. Hoje, há quem me vá ler e se constranja porque eu digo isto tudo "de um jogador de futebol." Não de um mártir, de um estadista ou dum herói qualquer. Eu digo que o problema do mundo é olhar para o céu em vez de ver o que está à nossa frente. E que quem é bom demais para inspirar-se com "um jogador de futebol", que não se preocupe, porque nunca vai ser como ele.

No ano passado não escrevi uma palavra. Há vezes em que não é preciso. Em boa verdade, nem uma consegui dizer, enquanto me tentava comportar como um adulto, com ele a chorar na televisão à nossa frente. Daqui a muitos anos, quando já houver a noção do que foi realmente o Ronaldo, não sei se vão acreditar no que isto custou a ganhar. Já nós, os que vimos, nunca vamos esquecer o orgulho que foi poder ficar tão contente por ele. Gosto de pensar que dificilmente o maior prémio individual voltará a ser ganho por tanta gente. Hoje festejamos mais uma, monstro. Tua e de todos os que sabem o tanto que as mereceste.

sábado, 10 de janeiro de 2015

The Imitation Game. Estatuto e pouco mais


Todos os filmes se sujeitam a ser avaliados à luz das expectativas que criamos para eles. Não sei se é lógico, mas é legítimo. É por isso que há determinados filmes de baixa monta que até nos enchem as medidas, mesmo quando estamos absolutamente conscientes das suas falências, ao passo que outros, tecnicamente impecáveis, efectivamente "superiores", acabamos por deixar de parte. Posto de uma forma simples, isto serve para dizer que The Imitation Game é uma desilusão.

Desde logo, porque a história era demasiado boa. Era como um thriller dos livros mas na vida real, um episódio mítico, incontornável e, durante meio século, secreto da 2ª Grande Guerra: a forma como os ingleses descodificaram a Enigma, a máquina criptográfica inquebrável que sustentava todas as comunicações nazis, obra e graça dum génio autista, homossexual e ostracizado de Cambridge, chamado Alan Turing. O elenco era tão bom como a história. No pico da forma e do reconhecimento do público e dos seus pares, Benedict Cumberbatch declarava a candidatura ao Óscar, secundado por uma lista de luxo da nata britânica. Era quase só pôr a toalha, afiar os talheres e esperar. The Imitation Game padeceu, porém, do mal tantas vezes inerente aos filmes que parecem fazer-se sozinhos.

O americano Graham Moore foi quem levou a cabo a adaptação do livro e a sensação que fica é que todo o seu cunho se resumiu a não querer estragar. A sintetizar a obra até à forma de um argumento, sem inventar demais, sem arriscar e sem nada que pudesse falhar. O resultado é um filme absolutamente liso, sem pulso nenhum, que se limita a fazer duas horas num piloto automático mais ou menos imperturbado e previsível. Pior do que isso, das poucas vezes em que tenta ser confrontacional ou emotivo, falha completamente, criando essas pequenas situações sem engenho, como quem está a seguir as deixas de um livro de instruções, porque era suposto. Em suma, o texto não é rico, as situações não são críveis e a relação entre as personagens, mais do que falhar, nunca chega realmente a ser profunda que baste.

Não é que o filme seja um transtorno, é só insuficiente. A história, seja como for, é inevitavelmente boa. A realização de Morten Tyldum é competente e a banda sonora de Alexandre Desplat é tão boa como sempre. O melhor em The Imitation Game é evidentemente Cumberbatch, mas o filme também é meritório na envolvência que, por ora, lhe consegue criar. Narrado em três faixas temporais, o bullying, o desconforto e a desconfiança são genuínos e, a espaços, respiram-se no ar, dando-lhe a credibilidade que a acção propriamente dita não consegue dar. Depois, claro, há o alcance de Benedict Cumberbatch.

A corrida ao Óscar foi precoce este ano e o britânico posicionou-se muito cedo, com muita opinião pública a favor. Gosto realmente dele e considero a performance de primeira água, mas também acho pacífico dizer que não é a melhor do ano. Não necessariamente por sua causa, mas porque o filme não o soube potenciar mais e melhor. Cumberbatch é um grande Alan Turing, com tantas idiossincrasias que já lhe reconhecemos de Sherlock que, hoje, quase já parecem dele. Trata-se de um papel exposto, a pedir uma vulnerabilidade estranha e perturbada, disfarçada de arrogância, que ele capitaliza como poucos. E o seu fim, enquanto personagem, é realmente brilhante. No resto, é o filme que não é bom o suficiente. Nem lhe exigiu mais, nem lhe deu mais interpretações à altura.

Os secundários são a outra grande derrota de The Imitation Game. Matthew Goode é, mesmo assim, quem melhor consegue disfarçar. Tem boa presença, carisma e aquela altivez cativante dos melhores adversários. Sem muito espaço, mas bem. Todos os outros são sombras e, quanto a isso, destaco com pesar o desaproveitamento de Charles Dance e Mark Strong. Keira Knightley, por fim, é de uma inocuidade total. Já há uns bons anos afastada da alta roda, voltou a ter oportunidade num filme com ambições, mas desperdiçou-a. É completamente unidimensional. Não tem uma única grande cena e toda a sua presença é ligeira e boçal, como quem só lá está para decorar. Uma pena.

The Imitation Game tem acumulado um sem número de nomeações. Nos Globos, por exemplo, corre para Melhor Drama, Argumentista, Actor e Actriz... o que só o torna num dos filmes mais gravemente sobrevalorizados do ano. Na realidade, é apenas razoável. Tem estatuto, Cumberbatch e o mérito alheio de ser verídico. Fora isso, é uma das desilusões de 2014.

6.5/10

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

The Drop. Era fácil fazer melhor


Há uma categoria de filmes série B da qual sou um fã confesso. Fora do espectro dos filmes oscarizáveis e a meio caminho da teia de blockbusters, há uma nata de películas que, anualmente, providenciam aquele escape bom de domingo à tarde, algures numa equação entre crime, acção e um protagonista digno desse nome. Por estes dias, enquanto se aguardam ansiosamente todos os lançamentos da época dos prémios, acaba por haver espaço para pôr em dia essa conta de filmes que a Primavera e o Verão não permitiram. The Drop parecia reunir os pontos quase todos: tinha Brooklyn como cenário, uma história de máfia nova e rivalidades velhas e a vertigem do business as usual, predicados que coroava com Tom Hardy no papel principal e com nada menos do que a última aparição do icónico James Gandolfini. Esta casta de filmes que acabei de descrever, cíclicos por definição, padecem, contudo, do mal que é viverem quase sempre no limbo. Nunca são propriamente surpreendentes e o que separa a vulgaridade de um bom achado é um conjunto de pormenores ou, pelo menos, uma ideia feliz. The Drop não é um bom achado.

Acho que um bom ponto de partida para estes filmes é serem descomplexados. Saberem o que são, viverem com isso e tentarem transcender-se naquilo que controlam. É determinante que não se achem muito especiais. O primeiro problema de The Drop começa logo aí: o argumento é presunçoso. Fala do que toda a gente já falou com a languidez e a sobranceria de quem está a inventar a roda. Depois, é um filme demasiado lento. Parece autoritário e contemplativo, parece querer desvirtuar as fórmulas típicas do seu tipo (diálogo vivo, quebras de acção, pulso), mas a verdade crua é que só o faz de forma a mascarar o seu ostensivo vazio. No fundo, fala pouco porque não tem mais nada para dizer. The Drop não tem nenhuma grande ideia, sendo críptico e, às vezes, quase incompreensível... sobre nada (onde emerge toda a alegoria sobre um cão - um pitbull bebé que é um dos pontos altos da narrativa... exclusivamente por ser realmente adorável). No fim, vale o golo de honra, com a sociopatia e o pragmatismo a marcarem pontos. Mas soube a pouco. Ainda mais no momento em que se descobre que o argumentista era nada mais, nada menos do que Dennis Lehane, uma imperial referência que tem no currículo, apenas, uns tais de Mystic River e Shutter Island...

Falhou a estrutura e falharam os papéis-chave. O caso mais peculiar é o de Tom Hardy, que passou ao lado não por culpa própria, mas porque fez exactamente o que lhe pediram. Não me lembro de muitos casos em que um actor se tenha auto-censurado tanto para caber num papel, mas Hardy despiu-se de quase todos os seus traços (intensidade, reactividade, perspicácia), para retratar um homem solitário, aborrecido e imperturbável. Gabo a disciplina e até consigo perceber a caracterização no contexto do objectivo maior, mas é a personagem em si que não funciona, sacrificando uma hora e meia inevitavelmente fastidiosa por um efeito colateral. Gandolfini quase prefiro evitar, bastando-me dizer que não será evidentemente por esta amostra que será lembrado, num papel tão cliché como seria possível. Houve, contudo, uma boa surpresa. O belga Matthias Schoenaerts, conterrâneo e colaborador prévio do realizador Michaël R. Roskam, chegou-se, ele sim, à frente com uma performance digna desse nome, na pele de um delirante criminoso de rua que conseguiu sempre ser perigosamente desconfortável. Fica de referência futura. Noomi Rapace (Prometheus) também acabou por estar bem. Tem uma presença que não é fácil contornar.

Em suma, não se pedia muito e as armas estavam na mão, até melhores do que a encomenda... mas The Drop atirou quase tudo ao lado. Era fácil fazer melhor.

5.5/10

domingo, 4 de janeiro de 2015

St. Vincent. O indie do ano


É um daqueles filmes para nos deixar com um sorriso na cara o dia todo. De coração cheio, de bem com a vida. Acho que, hoje em dia, cada vez se menosprezam mais os filmes felizes. Também porque, a dada altura, eles se puseram a jeito. Vulgarizaram-se, melodramatizaram-se, enjoaram. Acho que, em boa parte, deixamos de enxergar o seu valor. O valor do feel good movie, do cinema como catarse para o que há de melhor nas pessoas, sem jogos, sem twists e sem perversões. St. Vincent é tão puro como dizer que se gosta de alguém. Não é um filme cor-de-rosa, longe disso, não vive em nenhum Olimpo acima das nossas cruezas mundanas, mas percebe o essencial, ao exaltar a beleza das coisas e da gente, mesmo quando a vida e o mundo podem ser realmente feios à nossa volta. É tão puro como dizer que se gosta de alguém, porque isso é coisa que dizemos tão pouco e que, afinal, nos esquecemos do tão simples que é, e de todo o bem que faz. St. Vincent é isso: é um filme que nos faz bem.

O argumento é divino na interacção entre as personagens, na sua caracterização e, no fundo, na qualidade imensurável que é ter uma beleza intrínseca. Note-se que a história não é nova: um velho gasto e áspero conhece um miúdo cheio de vida e, do cume dos seus vícios, assume-se como a figura paternal que lhe faltava, ao passo que, na verdade, estava ele a receber muito mais do que a dar. A história não é nova mas, como acontece tantas vezes com as melhores, o segredo são as pessoas e a forma de as contar, porque a fórmula está lá e é de sucesso por alguma razão. Theodore Melfi foi o realizador-argumentista e, na sua primeira longa-metragem, o mérito maior está longe de ser técnico. O sua chave de ouro foi recuperar ao cinema o que o cinema tem de essencial: um coração do tamanho do mundo, a redenção e a capacidade para emocionar-se a contar essa história.

Como já se deve ter tornado óbvio, num filme sobre pessoas, nada poderia ter funcionado sem um cast perfeito. Bill Murray e Jaeden Lieberher foram o cast perfeito. Permito-me começar pelo miúdo, porque ninguém pode ficar indiferente a quem interpreta aquilo com 11 anos. Convenci-me, em tempos, de que fazer cast de crianças era meio caminho para falhar o objectivo, porque não me parecia que os miúdos conseguissem realmente ser genuínos. Não sei se foi só imaturidade minha, mas facto é que os últimos anos têm sido espantosos nesse campo. Assim de repente, basta relembrar Tye Sheridan (Mud), Quvenzhané Wallis (Beasts of the Southern Wild) ou Asa Butterfield (Hugo). Jaeden Lieberher entra pois, e de portas escancaradas, nessa pequena galeria de luxo. O puto tem tudo: instinto, peculiaridade e um timing extraordinário. Se a qualidade do texto é necessariamente equiparável à forma como se o utiliza, Lieberher fez do óptimo que recebeu, um ainda melhor. Como se o tivesse feito a vida toda.

Do grandioso Bill Murray não há muito a dizer. Acredito que um produtor que tenha pegado no texto e fechado os olhos por um momento, só o possa ter imaginado a ele no papel. É um fato de alfaiate, cortado e costurado ao centímetro para pulsar a avalanche do seu velho carisma que, aos 64 anos, faz dele hoje uma autêntica figura de culto. Basta fazer uma pesquisa diagonal para ver tudo o que a Internet derrama dele por estes dias. E é daquelas personagens que o merece, de facto, porque é impossível não gostar dele. A sua inevitável redenção é a história que já vimos milhões de vezes mas que, em consciência, sabemos simplesmente que não podemos deixar de gostar uma mais. E a jornada inortodoxa de um velho e de um miúdo em casas de strip, em corridas de cavalos ou em tascas perdidas, com whisky e uma jukebox, toca-nos, de facto, porque, ao fim do dia, o cinema é muito mais simples do que parece.

St. Vincent não vai ganhar nenhum prémio maior - cá estaremos para torcer pelos dois Globos Musical/Comédia -, e não me parece que vá passar aos livros como um clássico. Para mim, contudo, foi amor à primeira vista e é definitivamente um dos meus mais acarinhados do ano. Como se fosse preciso, ainda tem uma daquelas playlists para beber de olhos fechados... e dá ouro até aos créditos. Boa sorte se tentarem não gostar.

8.5/10


sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

The Theory of Everything. Dos filmes que têm quase tudo


O maior elogio que posso fazer a The Theory of Everything é dizer que está à altura da vida e da figura de Stephen Hawking. É essa a percepção final de duas horas de esmagamento físico e emocional que, tal como o universo ao qual ele devotamente se dedicou, nos fazem sentir muito, muito pequenos. Quase gratos.

Já vi muitas metamorfoses em cinema. Muitos retratos cruéis de doença, exponencialmente desconfortáveis, violentos e chocantes. Muito poucos, honestamente, com o alcance gravitacional que Eddie Redmayne lhe conseguiu imprimir. O seu Stephen Hawking oblitera-nos a alma. Amassa-nos as entranhas, agride-nos, deixa-nos a um canto, sem defesas, sem saber o que dizer. Poucas vezes a espectacular degradação física de um ser humano terá sido tão honestamente retratada, num plano que vai muito além da caracterização - que é melhor do que o imaginável -, e se legitima no mandato da perfeição interpretativa. Como Hawking, Redmayne comunica realmente com os olhos, com os gestos e com os esgares que lhe puderam sobrar, numa sinfonia trágica, mas absolutamente arrebatadora. A cruz de um dos génios maiores da nossa Era foi, como numa parada bíblica, ter de sacrificar o corpo e é inenarrável olhar hoje para o que têm sido os seus estupefactos 72 anos, com 2 casamentos, 3 filhos e a celebração como um dos maiores físicos da História e como figura científica de culto. Mas nada dele é aqui avaliado pela medida da sua genialidade cósmica. O que se conta aqui não é a teoria ou o talento, mas a sua superação enquanto homem, a resiliência sobre todas as coisas, quando o mais fácil, o mais decente, o mais humano era ter desistido.

Uma das cenas mais ressonantes do ano será a do momento em que, pela enésima perversão do destino, ele perde a voz. Em que bate no fundo do seu buraco negro, coisa que nos devora com um sentimento de impotência honestamente arrepiante, e em que ele se assemelha a um farrapo de gente solitário, mudo e perdido na vastidão do universo... até que os olhos lhe ficam pesados de lágrimas e, afinal, cheios de vida, e lembram-nos de que há uma luz que nunca se apaga. Que, como o próprio resumirá superiormente, se há vida, há esperança. Esta ode transcendental à condição humana é a arte da representação tão majestosa quanto ela pode ser. É escusado reiterar, portanto, quem é, desde já, o meu favorito ao Óscar.

James Marsh, galardoado pela Academia com Man on Wire, é quem realiza, com base na adaptação do livro de Jane Hawking, a primeira mulher de Stephen. Na síntese, este é um filme em que a interpretação é tão boa, que é quase tudo, açambarcando narrativa, picos cronológicos e peculiaridades da acção. Tudo é menor perante a performance de Eddie Redmayne, tudo é completado e engrandecido por ela. É justo, contudo, reconhecer a óptima direcção de Marsh que, até à data, tinha um passado essencialmente noutro plano, o dos documentários. É uma realização francamente fértil, que se socorre de um manancial de soluções, de impulsos e de quebras, uma lente tão educada e talentosa quanto necessário para nos conduzir pelo gabarito da história. É, em suma, um trabalho requintado, que vai sempre um pouco mais longe e que compõe dedicadamente tudo o que faz. Gostei, em particular, do enfoque enriquecedor, quase artístico, nos momentos em que o protagonista se deixava ficar sozinho e do recurso a vintages filmados com câmaras de 8 milímetros, para acomodar a necessária cronologia da história.

Se há insuficiência a apontar ao filme é a edição. A adaptação do argumento, da autoria de Anthony McCarten, também carecia de outras nuances, para disfarçar e pontear melhor a passagem do tempo, mas o corte de cenas é o campo que deixa mais a desejar. É delicado filmar biografias e não é necessário reforçar a infinitude da tarefa que era reduzir a vida de Stephen Hawking a duas horas; faltou, contudo, algum engenho, quiçá experiência, para proteger as respectivas faltas. Os primeiros 20 minutos de filme, em especial, pareceram um desconfortável teste de velocidade e isso continuou a sentir-se ao longo de toda a primeira metade.

No mais, voltar aos elogios. Num filme ingrato para secundários, Felicity Jones é muito boa. A personagem não é irrepreensível e nota-se, ocasionalmente, o facto do livro ter sido escrito pela própria mulher de Hawking, mas Felicity Jones é tão consistente quanto lhe poderiam pedir. Gabo-lhe a suavidade e o carisma doce da primeira fase e, depois, a progressiva reinvenção, não num par de momentos mais melodramáticos que lhe escreveram, mas nos pormenores da genuína e resistente dedicação de todos os dias, própria de quem vestiu a personagem de corpo e alma, e não apenas no set. Destaco ainda David Thewlis, no carácter mentorial de Cambridge, e Harry Lloyd, pela camaradagem dos verdadeiros e pela bolsa de boa-disposição que até hoje é uma imagem de marca de Hawking. Finalmente, uma vénia à monumental banda-sonora do islandês Jóhann Jóhannsson, uma das nomeações do filme aos Globos de Ouro, além das naturais a Melhor Drama, Actor e Actriz.

The Theory of Everything é um filme todo-poderoso. Um encontro feliz entre a história de um homem maior do que a vida e intérpretes talentosos o suficiente para a mostrarem ao mundo com o carácter dos predestinados. Evidentemente, um dos filmes pelos quais 2014 será lembrado.

8.5/10