segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

O que não nos mata


Há exactamente dois anos, escrevi aqui aquele que viria a ser o meu texto mais lido de sempre. Essa podia ter sido uma segunda-feira qualquer, não parecesse declaradamente ferida por um abismo da História. O planeta resfolgava no frenesim dourado já típico da segunda semana de Janeiro, mas para uns tantos era dia apenas de mais uma fatalidade anunciada. Messi ganharia a sua 4ª Bola de Ouro e bom era que todos nos conformássemos com isso, mesmo que olhássemos a custo para o ano que ficara para trás e o asco nos engolisse vivos, com aquele impulso de um miúdo que vai ser injustiçado por um professor e que sabe que não há nada a fazer. Ronaldo alcançara nessa época o que na meia década que o antecedeu parecera puramente irrealizável: bater o Barça, quebrar o tiki-taka, ganhar a pulso um jogo que o único rival tivera viciado. E, no fim, não chegara. Nesse dia, pareceu certo nunca ir chegar. Mais do que em revolta, lembro-me de olhar para essa inevitabilidade da derrota com desolação. Fizemos tudo o que podíamos, miúdo. Todavia, pensei eu, na vida há jogos que não podemos realmente ganhar. Lembro-me de ter aceite, de não ter mais nada a dizer, de nenhum argumento valer ainda a pena perante a grosseira evidência das circunstâncias. Até que parei num directo da SIC.

Com a passadeira vermelha de Zurique em fundo, Nuno Luz perorava sobre a infimidade das nossas hipóteses, num fado triste e pachorrento para conservar a longa emissão ligada às máquinas e servir-nos a morfina, antes do nosso destino terminal. Honestamente, não lhe estava a prestar muita atenção, até que, na praxística revista de imprensa internacional, ecoou o seguinte: "alguns colunistas acreditam que Ronaldo tem uma hipótese... porque Messi tem três Bolas de Ouro e a 4ª já não teria muito significado." Nesse momento, foi como sentir veneno na alma. O impulso de expiá-lo pela ponta dos dedos foi, tão só, inevitável. Ao fim e ao cabo, aquilo já não era sobre ganhar ou perder uma Bola de Ouro outra vez. Aquilo era um fim da História nele próprio. O melhor futebolista desse ano, nessa sabotada luta titânica, não só ia inevitavelmente voltar a perder, como ia ter de assistir a que lhe condescendessem essa derrota. A nós, restava admitir, sucumbir envergonhados àquele destino cáustico que outros lhe tinham escrito. É nessas alturas que percebemos que, no limite, a vida é um KO. Que não são os outros que nos vencem, somos nós que perdemos. E que perder é só uma opção. Que se nunca deitarmos a toalha, então o jogo não pode realmente acabar. O jogo acaba quando e como nós quisermos. Se não hoje, pois amanhã. Orgulho-me de muitos textos que escrevi, mas esse é definitivamente especial. 

Nesse dia, o Ronaldo perdeu, de facto, a Bola de Ouro. Orgulhava-me mesmo se ele tivesse continuado a perder, orgulho-me mais porque acredito que esse dia é a razão de termos voltado cá hoje. Se o que não nos mata torna-nos sempre mais fortes, Ronaldo é a materialização estatual de Nietzsche. Discutir o quão bom ele é realmente é dos passatempos que mais gozo me dá. Discutir o quanto é ou não um dos melhores de sempre, qual é, afinal, o seu alcance futebolístico, o que é que oferece ao futebol do Real, se ainda vale a pena ver. A ironia que muita gente ainda não percebe é que a eternidade de Ronaldo não se medirá nas fintas, nas assistências, nas vitórias, nem no demencial número de golos que marcará até ao fim da vida. Quando daqui a 30 anos olharem para trás, no que não vão acreditar é na alma daquele cabrão. Na anormalidade competitiva, na obstinação pela excelência, na mentalidade olímpica. Na necessidade instintiva de fazer mais todos os dias, de ser espectacularmente melhor todos os anos. Quase todos os que se cruzaram com ele, dizem que Ronaldo foi o profissional mais excepcional que conheceram. Mas Ronaldo não é profissional nenhum, porque o profissionalismo é uma história de esforço, disciplina e sacrifício. Ronaldo não sofre para ser melhor, pelo contrário, transcende-se por isso e por causa disso. Alimenta-se, respira e precisa disso. Os profissionais falham, fartam-se, acabam. Ronaldo é para sempre. Se me perguntarem se é o melhor jogador de todos os tempos? Não é. Mas é o mais próximo que o jogo já esteve de um super-homem. Os seus números são uma nota de rodapé se comparados ao tamanho da sua mentalidade. 

Quando daqui a 30 anos olharem para trás, no que não vão acreditar é no tamanho do exemplo. E vão à merda com cada um dos vossos lirismos e preconceitos, Exemplo sim senhor, com letra grande e para o dia-a-dia, por mais que os seus excelsos contemporâneos preferissem avaliar-lhe a forma e o feitio e achassem que não se pode aprender nada com o futebol. Com um gajo que nunca teve uma fácil e, pior do que nunca ganhar um favor, que ainda fizeram questão de humilhar, antes de, pelo próprio pulso, provar-lhes a todos que se o quisessem matar, então iam ter de querer muito, mas muito mais do que ele. Um exemplo sim senhor, para quem se levanta todos os dias e professa o "somente o necessário". Para quem o mais ou menos é mais do que suficiente. Para quem acha que tem azar, para quem se anula à sombra da primeira pancada e para quem volta para casa, ao fim do dia, muito ocupado a ter pena de si próprio. Fomos feitos para querer sempre mais. Para sermos melhores do que as nossas expectativas. Para sermos superlativos seja qual for o nosso lugar, para gostarmos de fazer bem e para ter brio em ver bem feito. Fomos feitos para ter uma porra dum sonho e para que ninguém nos diga onde raio é que podemos parar. Hoje, há quem me vá ler e se constranja porque eu digo isto tudo "de um jogador de futebol." Não de um mártir, de um estadista ou dum herói qualquer. Eu digo que o problema do mundo é olhar para o céu em vez de ver o que está à nossa frente. E que quem é bom demais para inspirar-se com "um jogador de futebol", que não se preocupe, porque nunca vai ser como ele.

No ano passado não escrevi uma palavra. Há vezes em que não é preciso. Em boa verdade, nem uma consegui dizer, enquanto me tentava comportar como um adulto, com ele a chorar na televisão à nossa frente. Daqui a muitos anos, quando já houver a noção do que foi realmente o Ronaldo, não sei se vão acreditar no que isto custou a ganhar. Já nós, os que vimos, nunca vamos esquecer o orgulho que foi poder ficar tão contente por ele. Gosto de pensar que dificilmente o maior prémio individual voltará a ser ganho por tanta gente. Hoje festejamos mais uma, monstro. Tua e de todos os que sabem o tanto que as mereceste.

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