sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

The Theory of Everything. Dos filmes que têm quase tudo


O maior elogio que posso fazer a The Theory of Everything é dizer que está à altura da vida e da figura de Stephen Hawking. É essa a percepção final de duas horas de esmagamento físico e emocional que, tal como o universo ao qual ele devotamente se dedicou, nos fazem sentir muito, muito pequenos. Quase gratos.

Já vi muitas metamorfoses em cinema. Muitos retratos cruéis de doença, exponencialmente desconfortáveis, violentos e chocantes. Muito poucos, honestamente, com o alcance gravitacional que Eddie Redmayne lhe conseguiu imprimir. O seu Stephen Hawking oblitera-nos a alma. Amassa-nos as entranhas, agride-nos, deixa-nos a um canto, sem defesas, sem saber o que dizer. Poucas vezes a espectacular degradação física de um ser humano terá sido tão honestamente retratada, num plano que vai muito além da caracterização - que é melhor do que o imaginável -, e se legitima no mandato da perfeição interpretativa. Como Hawking, Redmayne comunica realmente com os olhos, com os gestos e com os esgares que lhe puderam sobrar, numa sinfonia trágica, mas absolutamente arrebatadora. A cruz de um dos génios maiores da nossa Era foi, como numa parada bíblica, ter de sacrificar o corpo e é inenarrável olhar hoje para o que têm sido os seus estupefactos 72 anos, com 2 casamentos, 3 filhos e a celebração como um dos maiores físicos da História e como figura científica de culto. Mas nada dele é aqui avaliado pela medida da sua genialidade cósmica. O que se conta aqui não é a teoria ou o talento, mas a sua superação enquanto homem, a resiliência sobre todas as coisas, quando o mais fácil, o mais decente, o mais humano era ter desistido.

Uma das cenas mais ressonantes do ano será a do momento em que, pela enésima perversão do destino, ele perde a voz. Em que bate no fundo do seu buraco negro, coisa que nos devora com um sentimento de impotência honestamente arrepiante, e em que ele se assemelha a um farrapo de gente solitário, mudo e perdido na vastidão do universo... até que os olhos lhe ficam pesados de lágrimas e, afinal, cheios de vida, e lembram-nos de que há uma luz que nunca se apaga. Que, como o próprio resumirá superiormente, se há vida, há esperança. Esta ode transcendental à condição humana é a arte da representação tão majestosa quanto ela pode ser. É escusado reiterar, portanto, quem é, desde já, o meu favorito ao Óscar.

James Marsh, galardoado pela Academia com Man on Wire, é quem realiza, com base na adaptação do livro de Jane Hawking, a primeira mulher de Stephen. Na síntese, este é um filme em que a interpretação é tão boa, que é quase tudo, açambarcando narrativa, picos cronológicos e peculiaridades da acção. Tudo é menor perante a performance de Eddie Redmayne, tudo é completado e engrandecido por ela. É justo, contudo, reconhecer a óptima direcção de Marsh que, até à data, tinha um passado essencialmente noutro plano, o dos documentários. É uma realização francamente fértil, que se socorre de um manancial de soluções, de impulsos e de quebras, uma lente tão educada e talentosa quanto necessário para nos conduzir pelo gabarito da história. É, em suma, um trabalho requintado, que vai sempre um pouco mais longe e que compõe dedicadamente tudo o que faz. Gostei, em particular, do enfoque enriquecedor, quase artístico, nos momentos em que o protagonista se deixava ficar sozinho e do recurso a vintages filmados com câmaras de 8 milímetros, para acomodar a necessária cronologia da história.

Se há insuficiência a apontar ao filme é a edição. A adaptação do argumento, da autoria de Anthony McCarten, também carecia de outras nuances, para disfarçar e pontear melhor a passagem do tempo, mas o corte de cenas é o campo que deixa mais a desejar. É delicado filmar biografias e não é necessário reforçar a infinitude da tarefa que era reduzir a vida de Stephen Hawking a duas horas; faltou, contudo, algum engenho, quiçá experiência, para proteger as respectivas faltas. Os primeiros 20 minutos de filme, em especial, pareceram um desconfortável teste de velocidade e isso continuou a sentir-se ao longo de toda a primeira metade.

No mais, voltar aos elogios. Num filme ingrato para secundários, Felicity Jones é muito boa. A personagem não é irrepreensível e nota-se, ocasionalmente, o facto do livro ter sido escrito pela própria mulher de Hawking, mas Felicity Jones é tão consistente quanto lhe poderiam pedir. Gabo-lhe a suavidade e o carisma doce da primeira fase e, depois, a progressiva reinvenção, não num par de momentos mais melodramáticos que lhe escreveram, mas nos pormenores da genuína e resistente dedicação de todos os dias, própria de quem vestiu a personagem de corpo e alma, e não apenas no set. Destaco ainda David Thewlis, no carácter mentorial de Cambridge, e Harry Lloyd, pela camaradagem dos verdadeiros e pela bolsa de boa-disposição que até hoje é uma imagem de marca de Hawking. Finalmente, uma vénia à monumental banda-sonora do islandês Jóhann Jóhannsson, uma das nomeações do filme aos Globos de Ouro, além das naturais a Melhor Drama, Actor e Actriz.

The Theory of Everything é um filme todo-poderoso. Um encontro feliz entre a história de um homem maior do que a vida e intérpretes talentosos o suficiente para a mostrarem ao mundo com o carácter dos predestinados. Evidentemente, um dos filmes pelos quais 2014 será lembrado.

8.5/10

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