sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Boyhood. Porque é que Linklater é um dos maiores da História, porque é que o filme não é


Não consigo medir o quanto gostava de ter gostado de Boyhood.

Foi, desde o momento do anúncio e até ao último dia, o meu favorito. Era um daqueles que estava escrito, uma aposta com tamanha garantia, que o fui deixando ficar, tão certo que estava da fidelidade do produto final. Era, de uma vez por todas, a inalcançável Bola de Ouro de Richard Linklater, depois de tantos anos na sombra indie, depois de já ter dado mais ao cinema do que o cinema lhe poderá um dia dar. Vi o Before Sunrise numa madrugada que já ia longa e, com aquele fascínio de quem vê uma obra-prima com os próprios olhos, tanto mais estremunhado por nunca terem estendido àquilo passadeiras vermelhas, champagne e estátuas preciosas, vi nessa mesma noite o Before Sunset, até o sol me começar a nascer. Se estão a ler isto e nunca os viram - elogio profundamente estendido a Before Midnight, no ano passado - espero que parem agora e se façam à vida.

Richard Linklater cometeu a alucinação de filmar Boyhood durante 12 anos - doze -, uma semana de cada vez, para fazer não com que o cinema se parecesse mais real... mas que o fosse mesmo. Isso é o que já todos devem saber sobre o favorito aos Óscares de 2015. O que talvez não saibam é que, para inventar o romance mais supremo que o cinema já viu, para que a sua trilogia fosse boa que chegue, já ele demorara... 18 anos - DEZOITO - com os Before. Disse ele, por estes dias, que "se o cinema fosse um quadro, o tempo seria a sua tinta." Linklater tem tudo: ideário, escrita, técnica, bom gosto e sensibilidade. E tem, sobretudo, algo que não se aprende, algo que já tem de nascer connosco: um desígnio, e o génio e o compromisso necessários para levá-lo a cabo. Como é que não se idolatra um gajo assim?

No fundo, espero honestamente que ele ganhe o Óscar, como ganhou há uma semana o Globo de Ouro. Porque o universo é perverso e escreve certo por linhas tortas. Porque toda a gente deve chegar ao lugar que lhe pertence e porque, algures no caminho, ele conseguiu, afinal, romper o binómio espácio-temporal que cronicamente separou a sua filmografia daquela que ganha prémios. Seja qual for o palco, nunca poderei ter uma objecção à celebração de alguém como ele. É como ver Aaron Sorkin, deus maior da televisão americana, colher o reconhecimento final com um filme como The Social Network. Ou McConaughey passar à História com Dallas Buyers Club. No fim, contarão as grandes exibições e os prémios, não necessariamente as que aconteceram a par e passo. O que nos leva à questão, admito que ostensivamente subjectiva: onde é que Booyhood falhou?

Desde logo, é discutível que tenha falhado. Está na categoria de filmes de tal assombro, com tão espectacular sustento, que se pode dar ao luxo de que cada um decida esta resposta religiosamente por si próprio. Forço-me a começar pelo melhor: estilisticamente, é um filme esmagador. Irrepetível. Emprestar 12 anos de devoção a tecer seja que obra for seria sempre impressionante; num meio tão imediatista e tão volátil como o cinema, é honestamente indescritível. À parte todo o enquadramento, a direcção de Linklater é inatacável, como sempre. Pacífica, angular, delicada, cheia. Completamente adequada a tudo aquilo que o próprio idealizou. Bem na cor, na luz, bem nos tempos em que deixa a acção respirar, pensar, em que nos incentiva a sorver. Mais uma banda sonora à altura do que se pretendia.

Acho que Boyhood deve obrigatoriamente ser visto. O que me parece é que só será visto uma vez. Por esta altura, acho que já deixei claro o meu posicionamento em relação ao realizador e a minha admiração em relação à ideia. O que não acho é que Boyhood funcione como produto cinematográfico. É uma experiência espectacular. Ambiciosa, total, ora graciosa, cativante. Mas, ironicamente, toda ela se desvanece no próprio teste do tempo que a torna possível. Boyhood é uma injecção de 3 horas com a qual é demasiado difícil identificar-se. É o tal álbum da adolescência, sem pontos muito altos, nem demasiado baixos, no fundo, tão idêntico à vida real, na forma e no conteúdo, que acaba por ser idêntico demais. É um filme totalmente contemplativo, de tal modo absorvido e encantado pela sua própria aura dormente que, quando chegamos ao final, damo-nos conta de que não conseguimos sintetizar quase nada. No fim de cada filme, faço sempre a mesma pergunta primordial: vê-lo-ia outra vez? Todos os melhores filmes jamais feitos são intemporais. São irresistíveis por instinto, porque catárticos, inspiradores, porque mesmo à enésima vez podem-nos contar algo que nunca tínhamos percebido. Ou reafirmar ou fazer-nos ver, se já estivermos preparados. Boyhood acaba nos créditos. É um filme espectacularmente ambicioso, geneticamente gigante, mas não vive para lá de si próprio. 

Tudo isto é absolutamente subjectivo. Para mim, todavia, a falta de estrutura narrativa que o torna diferente, é a mesma que consuma o seu falhanço. Seinfeld apresentava-se como uma série sobre nada, porque dizia que o dia-a-dia não tem moral da história. Que a vida é como é, feita de pequenos episódios, nunca de grandes argumentos. Suponho que o cinema não tenha de ser exactamente como a vida. Aquelas duas horas não deviam condensar uma adolescência, deviam reflectir sobre ela. Articulá-la, assimilá-la e, no fim de contas, serem as guias dessa jornada suprema que um dia fizemos sozinhos. Boyhood demite-se desse intento. É tão ambicioso na ideia, como fatalmente egoísta na concretização, tornando orfã a relação com o espectador. Distante, sedada, impessoal, finita. Quem sabe, daqui a 10 anos serei eu a olhar para o filme de maneira diferente. Ele continuando igual, eu porque talvez tenha mudado. Hoje, com todo o apreço que me merece, não é esse dia. 

6/10

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