segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

A diáspora


Ir correr o país com o Marítimo era um dos entusiasmos da minha ida para a Faculdade. Quem não vai ao estádio poderá relativizar, como o fará quem, consoante lhe apeteça, pode fazer uns quilómetros de carro e ir ver a sua equipa de sempre a um vizinho qualquer. Para a insularidade, porém, "ir ver" o Marítimo sempre foi uma coisa especial, uma afirmação, uma razão em si mesma. O meu pai não ia ao Continente passar uns dias com os amigos; o meu pai ia ao Continente ver o Marítimo, o que faz, basicamente, com que o resto fossem só as sobras. Eu nunca tinha ido. Daí que, à entrada para uns quantos anos do outro lado, já visse tudo na minha cabeça.

Como nas melhores histórias, o meu primeiro jogo foi o acontecimento mais inortodoxo à face da Terra. O primeiro ano ainda estava naquele início de Outono, eu ainda a perceber bem o que era aquilo tudo, e o meu velhote foi fazer as honras. 19 de Outubro de 2008. O Marítimo ia jogar a primeira eliminatória da Taça desse ano a casa de um clube então absolutamente desconhecido, que teria acabado de subir da 3ª para a 2ªb, algures lá bem no coração do Norte. Nesse dia, comi pão de ló pela primeira vez na vida. Descobri onde raio era Arouca no mapa, e fiquei a saber o que é perder-se pela noite nos caminhos de Portugal. Infelizmente, também percebi o amargo que é o nosso clube ser o gigante na história dos tomba-gigantes.

Até hoje, essa eliminação ocupa um lugar de destaque nos traumas da memória colectiva maritimista. Desse dia, contudo, guardo uma coisa completamente diferente. Ironicamente, o que nunca vou esquecer dessa derrota absurda é o gosto desmedido na cara do meu pai, por estarmos lá. Para ele, percebi isso depois, aquilo não era um jogo da Taça. Aquilo era uma passagem de testemunho. Um rito, uma etapa, uma instituição de pai concretizada. Era "irmos ver" o Marítimo, e nisso residia, por si só, todo o valor. Nesse dia, aprendi uma das minhas maiores lições de maritimismo: não interessa como acaba. Tudo o que interessa é que se esteja lá.

Vi muito menos jogos do que gostaria de ter visto. O dinheiro, o tempo e a Universidade nem sempre são sensíveis à militância. Mas ainda vi, felizmente, histórias para contar. Ainda nesse Inverno, com toda a gente a contar a hora de voltar para casa - diziam-nos as histórias que o segredo era sobreviver ao primeiro Inverno -, eu achei de ficar para trás, e gelar no Dragão, num dia 21 de Dezembro. Foi suficiente para ver o 0-0, o melhor resultado que lá se fez em 20 anos.

Um dia, na Mata Real, apanhei a chuvada da minha vida. 2 horas a levar com a água antárctica que jorrava do céu, no estádio mais velhinho e modesto que deve existir no Sistema Solar. Quem já lá foi num dia mau, há de compreender. Perdemos. E já nem jogávamos para nada, nesse fim de época. Que se foda, tão épico que foi, gritarmos pelo Marítimo sozinhos e ensopados, numa bancada só para nós, enquanto o resto do mundo racional se acotovelava na cobertura exígua das Centrais, para não apanhar uma pneumonia.

Estive em Alvalade, quando o Manu enfiou ao Patrício um dos bilhetes desse campeonato, no jogo que lhes pôs o ponto final no Paulo Bento forever. Grandes 600km foram esses, em menos de dois dias. Coisas para a fé do meu pai, bem visto, que alugou o carro, e, conforme a tradição, nos abasteceu de um saco de bifanas no pão, compradas numa das roulottes à saída, para ir para cima com a alma ainda mais quente.

Quando fui à Luz, perdi. Foi o fim-de-semana dos 20 anos de um dos meus irmãos de sempre. Ainda estávamos ressacados, e ele tinha um avião para apanhar em contra-relógio, no fim desse jogo e no fim desse domingo à noite. Estávamos a perder 3-0 ao intervalo, ia ser melhor jogar pelo seguro. Acontece que marcámos dois a abrir a segunda-parte, e a fé move montanhas, mesmo que não faça aviões ficarem à espera. Ele perdeu esse avião. Nós perdemos 3-2. Continuou a valer a pena.

O melhor jogo que vi foi a uma sexta-feira à noite em Coimbra. Até hoje, é um dos maiores festivais que tive o prazer de presenciar. Que bendito show de bola, com dois gajos a delirarem ali perdidos no meio do resto da gente, algures para onde os bilhetes de visitantes nos tinham mandado. Ganhámos 4-2, único desfecho à altura da História que também se celebrava nessa noite: Mitchell Van der Gaag lalalala, passou, então, a ser também música de treinador. Coimbra-B pareceu o sítio mais simpático do mundo, nas horas geladas em que ainda tivemos de esperar pelo comboio nessa noite.

Apanhei temporais, andei perdido, gastei dinheiro que às vezes nem tinha, tive medo de apanhar porrada, e perdi muitas vezes. Mas aquele gozo de ir desembocar a lugares onde nunca fomos, descobrir o caminho até ao estádio e chegar com a vaidade das nossas cores, dando, finalmente, com o nosso bastião, com o nosso sabor a casa, não é coisa que se explique. O coração fica cheio. E não conta, realmente, se ganhamos ou perdemos, como o meu pai me ensinou sabiamente, naquele primeiro dia. Ali, estamos em missão, estamos a dar a cara pela causa, temos o orgulho de poder dizer presente. E devoção não é coisa que se possa cobrar. A viagem é a recompensa, como diz um velho provérbio chinês. Essa devoção é o que investimos e o que ganhamos ao mesmo tempo.

A esses anos do outro lado do mar, e a nós, nessas viagens para ir ser fiel a casa, habituamo-nos a chamar de diáspora. Na semana passada, foi a minha vez de fazer parte, um dia mais. Hoje, foi a vez da diáspora festejar por mim.

1 comentário:

Filipe Tavares disse...

Grande história de um marítimista 100%