quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

American Hustle. Às vezes parece fácil


No ano passado, David O. Russell assinou aquele que muito apregoei como o melhor filme de 2012. Silver Linnings Playbook foi uma jóia de coroa, uma celebração rara do cinema comercial ao nível do que de maior se faz na Sétima Arte. Rendeu o Óscar de Melhor Actriz a Jennifer Lawrence e foi o primeiro filme em 30 anos a cometer a proeza de chancelar todas as sete grandes nomeações da Academia. A antecipação do que seria o próximo passo tornou-se, como é normal, inevitável. American Hustle confirma, um ano depois, que O. Russell é, de facto, um dos mais fascinantes contadores de histórias do grande circuito. A forma como as engrandece até onde não parecia possível que pudessem chegar, como lhes injecta vitalidade e como potencia o cast que tem ao seu dispor, se não é caso único nos dias que correm, andará muito perto disso.

American Hustle seria um filme sempre normal caso não fosse concebido por um visionário. A adaptação livre dos factos que, no fim da década de 70, levaram à prisão de congressistas e de senadores americanos, num golpe de subornos patrocinado pelo FBI, teria sempre sumo e seria fácil de fazer; o filme jamais correria tão bem, contudo, sem a extraordinária caracterização das personagens. Como nas maiores obras, a acção acaba por ser só o secundário do que ali acontece. American Hustle é um filme sobre pessoas, sobre motivações, sobre o que se queria ser e o que não se pode ter, sobre desejo e aceitação, ambição e sobrevivência e, acima de tudo, sobre o que é real num mundo de mentiras. Tem um texto estupendo a todos os níveis, no ângulo, na reflexão, na narração e nos notáveis diálogos. O argumento de O. Russell, em parceria com Eric Singer, surpreende-nos sucessivamente pelo nível até onde chega, pela intimidade e pelo realismo, e transcende em muito o filme que já estaria feito mesmo sem ele.

Para além disso, é uma obra cheia de vida. Reforço a cadência e a inteligência dos diálogos que lhe ceifam quase todos os tempos mortos, mas enalteço a cor, os ambientes, o barulho. É um filme com uma envolvência permanente, com muito movimento e muito burburinho de fundo, que abdica de concentração para nos encadear no melhor sentido. Capta notavelmente o espírito e os espaços dos anos 70, sendo burlesco, enleante, muitas vezes sensual. A câmara hiperactiva e curiosa de O. Russell faz o resto, sempre à procura de mais um palmo, sempre a fazer de conta que é o próprio espectador a perder-se na descoberta de cada nova cena. A somar isso, qual cereja no topo do bolo, o filme desfruta da playlist mais viciante do ano.

Actualmente, trabalhar com David O. Russell deve ser um privilégio para qualquer actor. No ano passado, o nova-iorquino garantiu o abuso de colocar um nomeado em cada uma das quatro categorias individuais... e, até ver, já o repetiu agora nos Globos. Christian Bale e Amy Adams são quem brilha a maior altura. Ele é uma figura peculiar, com barriga e sem cabelo, alheio a qualquer glamour, mas senhor daquele engenho extraordinário que só se aprende na rua e nos momentos de necessidade. Tem nos olhos a luz dos que sobrevivem sempre, mas jamais se distancia da sua simplicidade e do seu bom fundo. É ele quem canaliza a essência do filme, num papel riquíssimo e de empatia invejável. Amy Adams é o melhor de dois mundos, uma mulher espantosamente sensual e de recursos infindáveis para conseguir o que quer mas, ao mesmo tempo, terrivelmente vulnerável na procura por um pilar genuíno que a sustente no universo falso que criou à sua volta. Prepara-se para chegar à 5ª nomeação nos últimos 9 anos!, o que diz quase tudo sobre o seu talento.

Figuras maiores do ano transacto, Jenny Lawrence e Bradley Cooper voltam a dizer presente na etapa decisiva. Ela sobretudo, que capitaliza com o seu poderio incandescente um papel volátil e que provavelmente ficaria cingido nas mãos de alguém com um pouco menos de carácter. Cooper tem mais espaço e chega a reunir vários momentos estruturantes, todavia a certa boçalidade da personagem não o ajudou. Num elenco que era, de facto, de grandíssimo nível, ainda merecem reconhecimento Jeremy Renner, na pele do político de grande coração, vítima ingrata do momento e do lugar errados; Louis CK, que caiu como uma luva no boneco que lhe pediram; e o cameo de De Niro que, nos dias bons, continua, mesmo em cinco minutos, a ter o vulto dos gigantes.

Sacramentada por um dos mais importantes realizadores actuais, American Hustle é a oficialização da maturidade e do alcance do cinema de entretenimento, um cinema que é popular porque, acima de tudo, sabe falar sobre as pessoas. Um must.

8.5/10

Sem comentários: