quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Inside Llewyn Davis. Os Coen voltaram a fazer magia em negro


A minha relação com os irmãos mais glorificados do mercado foi sempre de amor-ódio. Estreei-me com No Country for Old Men e fiz, pelo menos, mais dois filmes a tratá-los como um caso perdido, até ter-me deparado com a demência vagamente genial de Big Lebowski. Voltariam, depois, os chutes ao lado até que, em 2010, curiosamente na repetição da parceria com Jeff Bridges, rendi-me a True Grit e concedi-lhes, de vez, o benefício da dúvida. É difícil gostar dos Coen, até porque eles fazem muito pouco por isso, na sua escrita sempre labiríntica, auto-absorvida e non sense; acontece, porém, que a loucura e a iluminação andam não raras vezes lado a lado, e é certo que, quando acertam as agulhas, o resultado final pode ser impactante. Inside Llewyn Davis, não sendo alheio a algumas das suas idiossincrasias difíceis, é um filme a que é impossível resistir. Pelo irrecusável romantismo triste que plasma, pela alma com tanto carisma quanto cicatrizes e, definitivamente, pelo seu monumental contexto, banhado a folk dos pés à cabeça. É um filme eminentemente musical, que materializa a nível visual todo o peso, a melancolia e a aura das suas canções.
"You've probably heard that one before. If it isn't new, and it never gets old, it's a folk song."
Sou um fã supremo do estilo e, portanto, sou suspeito para avaliar um filme que o homenageia ostensivamente em todos os momentos. Quem gosta de folk precisa mesmo de ir vê-lo o mais rápido possível, mas acho que ninguém poderá ficar indiferente ao seu perfume. Só a primeira sequência, com Oscar Isaac a interpretar a uma cena inteira, sem cortes, Hang Me, oh Hang Me, de Dave van Ronk, num café-concerto subterrâneo, em lusco-fusco, é magia em estado puro e amor à primeira vista. Num registo, aliás, que lhes brota sem esforço, ninguém poderia ter executado este espírito melhor do que os Coen. O cinzentismo do seu olhar deixa-nos inevitavelmente lânguidos e cola-se-nos à pele, fazendo-nos doer tanto quanto possível a desolação do seu protagonista. As suas cidades frias, os seus planos vazios, o permanente vaguear para lado nenhum e a frustração agreste repelem-nos mas, de repente, somos presenteados com instantes como cantar numa sala de espectáculos deserta, em segundos oníricos, cristalizados e impermeáveis a tudo de mau, que nos deixam num quase transe. A esmagadora maioria das músicas do filme são cantadas integralmente e ao vivo, e pode-se bem imaginar o efeito catártico que isso causa. Não sendo preciso reforçar, Inside Llewyn Davis tem efectivamente uma banda sonora boa demais para ser verdade, uma das melhores que ouvi na vida.

A história é a de uma semana na vida de um cantor-compositor na cena musical de Nova Iorque, no início da década de 60. Llewyn Davis é um vagante, sem dinheiro, reconhecimento e quase sem abrigo, que tenta derrubar a cada novo dia o fracasso que o destino lhe prescreveu. Desengane-se, porém, quem pensa que este é um filme lírico, motivacional, moral. Não é o filme, nem nunca foram os Coen. Llewyn Davis não tem nada de poético ou sonhador. É um cáustico, orgulhoso demais do talento para mudar de vida, mas sempre amargamente consciente de que não lhe espera a sorte nem um final feliz. O resultado cativa tanto porque se sustenta, de facto, nessa ideia intrínseca de falhanço. Davis é tão notável porque não tem esperança, porque sofre com cada uma das suas canções e porque as concretiza com uma negritude e um desalento que lhe vêm do fundo da alma, num estilo onde só se pode ser verdadeiramente bom se doer o que se está a cantar.

Oscar Isaac assina uma prestação tão boa como lhe era possível pedir. Cada bocado daquilo está-lhe no sangue e custa-lhe pela vida, e não pode haver proveito maior para um actor do que impingir-nos isso de forma tão genuína. O carácter auto-destrutivo, a maneira como se desiludiu a si próprio e se despreza, as perdas de cabeça e as sujeições a quase tudo, ao sabor do vento e sem amor próprio que sobre, edificam uma das mais simbólicas prestações do ano. Num elenco capaz, Carey Mulligan também soma pontos, numa figura corrosiva que agride o protagonista ao ponto de personificar, em parte, o fel que o consome.

Inside Llewyn Davis é uma peça requintada e profunda, incrivelmente coesa na fusão entre a história contada e cantada, senhora de um bom gosto que chega a pasmar. Ter sido esquecida pelos Óscares é o tipo de humor negro que nem os Coen teriam coragem de fazer.

8.5/10

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