"Para mim, Eusébio será sempre o melhor jogador de todos os tempos"
Don Alfredo di Stéfano
Nunca me vou esquecer da minha primeira cassete de futebol. Tinha por volta de uns 7 anos e deu-ma um tio-avô que eu idolatrava e com quem estava todos os dias. A cassete era a "História dos Campeonatos do Mundo" até ao Itália-90 e escusado será dizer que, nas mãos de um miúdo fascinado, valeu mais do que uma Bíblia original. Revi-a até exaurir o velhinho VHS cá de casa, mais vezes do que alguma vez poderei contar. Acho que me sinto velho a escrever isto, mas esses eram os dias em que não havia youtube, canais desportivos ou documentários à descrição. Aquela cassete era, portanto, um daqueles portais das aventuras, um impagável mapa do tesouro para aprender futebol. Foi aí que tive a honra de os conhecer a todos.
Da Itália bicampeã fascista em tempos de guerra ao profético Maracanazo, quando 11 uruguaios derrotaram 200 mil brasileiros. Do Milagre de Berna ao lençol extraterrestre com que um menino de 17 anos chamado Pelé abafou Estocolmo. Dessa Canarinha estrelar, onde também ponteou Mané Garrincha, o anjo das pernas tortas, até à queda poética da Laranja Mecânica de Cruyff, aos pés de Kempes e de um bombardeiro chamado Gerd Muller. Da forma como a Velha Senhora de Rossi e Tardelli matou o Brasil-82, a melhor Selecção que já jogou, até à aparição no calor tórrido do México do Deus em pessoa. Nesse tempo parecia tudo grande demais. Tão mitificado, distante, inacessível. Gigantes eternos num Olimpo vasto muito para lá da modéstia da Humanidade. Mas também foi aí que conheci Eusébio.
Quem nunca o viu jogar, que tire agora uns minutos e lhe preste essa contrita homenagem. Para mim, que aquele monstro bestial tivesse levado o escudo ao peito e fosse do meu país foi, então, estarrecedor. Vi o Coreia do Norte-Portugal tantas vezes que é como se lá tivesse estado. Depois fui correr toda a campanha dos Magriços, das eliminatórias até ao terceiro lugar. Por educação e por feitio, a ideia de ser imparcial sempre foi das minhas mais caras. Lembro-me, por isso, da grosseira satisfação de pensar que podia admirar esse Eusébio da Silva Ferreira como os maiores, não porque ele era português, mas porque essa galeria excelsa era efectivamente o único lugar onde ele poderia morar. Então, na grandeza da infância, tomei uma decisão que qualquer pessoa de bem compreenderá como estruturante: com Garrincha e Maradona, Eusébio jogaria sempre no meu onze da História.
Não conheço dele o suficiente para falar do carácter, das opiniões ou sequer da sua vida extra-futebol. O que reconheço, porque bastava olhar para ele, era a sua transtornante simplicidade. Mais do que humilde, acessível e afável, coisas que toda a gente lhe enaltece, vou recordar o homem simples, com a graça e a gratidão na cara de quem acha secretamente que as pessoas não se deviam dar a tantos trabalhos só por estarem na sua presença. O homem que pela sua total excepcionalidade veio a ser maior do que qualquer estigma político e do que qualquer clube, conjugando carinho e unanimidade enquanto desportista maior de uma nação inteira e que, mesmo assim, parecia sempre envergonhado e passaria despercebido se pudesse. Acho que as pessoas respeitaram tanto o que foi Eusébio como aquilo que ele não quis ser.
Que não se tenha a verdadeira consciência da alucinação que foi o Inglaterra-66 é um crime nacional. Um Portugal que tinha tão pouco, ou até menos do que isso, que não tinha amor próprio e que estava orgulhosamente só no mundo foi às costas de um homem ter um Verão de luz em 50 anos de breu. Há quem olhe e decida destacar o aproveitamento propagandístico do Estado Novo. Eu prefiro lembrar que a genialidade extrema de um de nós, mesmo no pior dos tempos, foi capaz de rachar até a hostilização planetária e de iluminar-nos num raio de admiração incondicional.
Em Portugal, o futebol continua a ser um parente pobre para muitos pensadores. É o pão e o circo, é arte e a cultura dos tolos, que tem sempre de ser inoculada e admirada com vergonha, oxalá ficando os seus pés sujos o mais longe possível dos salões nobres da estima intelectual. Discutiu-se ontem uma condecoração como provavelmente se questionarão agora os três dias de luto nacional. Pois que hoje, enquanto Old Trafford coloca uma bandeira portuguesa a meia-haste, o Real joga de fumos negros por nossa causa e tantos símbolos mundiais vêm falar com tamanha reverência de um dos nossos, seja um dia para ter bem presente o que o jogo significa para este país e o quanto é uma das nossas bandeiras mais incríveis. É essa a única forma digna de o homenagear.
Por uma noite mais, o mundo fala dele e fala de nós com admiração. Foi sempre assim. Obrigado por tudo, Pantera.
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