sábado, 11 de janeiro de 2014

Blue Jasmine. A viagem anual ao culto


A questão tende a ser simples: o melhor argumentista original de todos os tempos não faria um filme mau nem se tentasse. O Mestre não pode, portanto, ser avaliado pela medida dos outros. A cada ano, não é importante se as suas obras são melhores ou piores, mas que a renovada oportunidade para beber da sua psicologia filosofal seja, em vez, devidamente aproveitada. Como não podia deixar de ser, Blue Jasmine é, pois, um Woody Allen dos pés à cabeça.

Usa e abusa das relações, retratando o conforto passageiro e o desalento permanente, até encarar a sua profética fatalidade e a solidão inevitável. Tem o olhar único sobre as peculiaridades do ser humano, com as suas tão caras compulsões mentais e a sua doce e omnipresente loucura, e tem personagens sempre descoladas da banalidade do quotidiano, reflectindo cruamente sobre as motivações e as necessidades de cada um, sobre a forma como as pessoas se vêem e sobre o que gostavam realmente de ter. E não esquece, claro, as ironias do destino, desterrando de forma cáustica qualquer justiça e qualquer sorte do universo. O conto trágico da socialite nova-iorquina que hostilizava a irmã até cair na mais rotunda pobreza conduz-nos em nova viagem por um ideário único, cujo génio para pintar o mundo e as pessoas, à beira dos 80 anos, não parece capaz de cessar o fascínio. Haverá quem olhe para o reconhecimento ao trabalho de Woody Allen e o ache, hoje em dia, meramente glorificado. Eu diria que ninguém que consuma os seus filmes pode, em consciência, sonegar que cada novo guião seu é um Melhor Argumento em potência, nomeável por decreto.

Depois de dois anos na Europa, o Mestre voltou aos Estados Unidos, no caso a São Francisco. Sou suspeito, porque acho que o seu roteiro Londres-Barcelona-Paris-Roma teve uma mística histórica, e mantenho que assistir ao Velho Continente pela sua lente tem sido uma experiência impagável que, espero, ainda esteja longe de se completar. Seja como for, e reiterando que estávamos mal habituados com os seus passeios recentes, Allen pinta São Francisco com uma cor e um prazer irrecusáveis. Com o talento para procurar lugares e focar pormenores, e com aquele jeito único de fazer-nos sentir sempre parte disso que vemos à nossa volta.

Cate Blanchett tem um papel muito interessante, muito mais quente e mais metamórfico do que lhe é habitual. É uma mulher perturbada e em negação, com um feitio agreste e muito amassada pelo passado recente. A fragilidade com que tenta recompor-se pelas próprias pernas, numa profunda desadequação ao mundo a sério, é woodyanismo por excelência, interpretado a um nível tão genuíno que lhe merece todo o aplauso. A cena em que está a falar ao telefone e tira três segundos para chorar, apenas por sentir uma nesga de chão a recolar-se novamente sobre os seus pés, é génio em estado puro. Não gostei de Sally Hawkins - banal em quase tudo, foi uma opção para lá de discutível -, mas o resto dos secundários compensou. Pessoalmente, destaco a hipertensão do grande Bobby Cannavale, a naturalidade de Louis CK a agarrar papéis (ano muito feliz no cinema) e o óptimo cast de Andrew Dice Clay.

Colocando as coisas em perspectiva, é impreterível reconhecer que Blue Jasmine não é um filme inesquecível. Não tem um toque especialmente único e não estaria, inclusive, nos meus cinco favoritos da galeria na última década. No entanto, como disse no início, isso só seria uma razão preponderante para os muitos mortais que apenas podem sonhar com o seu talento. No resto, e mesmo sabendo que ele não vai comparecer, saberá bem que os Globos de Ouro o honrem amanhã com o prémio carreira.

7/10

Sem comentários: