segunda-feira, 5 de maio de 2014

Nebraska. A vida não é preta e branca


Nebraska é um filme adorável a todos os níveis. Adorável de uma forma envergonhada, daquela que nos seduz e nos desarma, dando cor à existência por libertá-la de pragmatismos crus. Não é lírico, mas passa a sua mensagem de uma forma extraordinária, pelas metafóras, pela assimilação e pela vida que nunca é preta ou branca, mas muito menos óbvia do que isso, aqui de alguma forma replicada na própria alegoria semiótica a cinza. Nebraska conta a história de um velho pai nas muralhas escusas da demência e do último grande empreendimento da sua vida: cruzar meia América para ir reclamar um alegado prémio de um milhão de dólares. O prémio, como é bom de ver, nunca foi mais do que propaganda boçal, mas às unhas de quem percebe a vida a fugir-lhe debaixo dos pés, servia tão bem mesmo assim. O compadecente filho mais novo vai, então, guiá-lo numa redundante viagem de milhares de quilómetros que representará, naturalmente, muito mais do que isso. Materializará um regresso aos lugares da memória, numa jornada sobre vazio e sobre propósito, sobre ilusão honesta e ainda ir a tempo de alguma coisa e, acima de tudo, sobre a compaixão anuente que nos torna humanos.

Dois anos depois do excepcional The Descendants, e no padrão de Sideways, Alexander Payne apresenta-nos mais um incontornável projecto sobre família e fraternidade, confirmando-se como um dos mais importantes realizadores dos últimos anos. Nebraska é um filme impecavelmente medido, doce e bonito, com uma grande fotografia e óptima banda sonora, ao qual o preto e branco assenta exactamente como uma luva. Não é fácil escrever sobre família, mas é igualmente árduo filmá-la de forma genuína. Payne capta-o, mais uma vez, com a candura, o tacto e a ironia que já o celebrou e assina mais um grande trabalho. Ao contrário dos filmes supracitados - que lhe valeram em ambos os casos o Óscar para Melhor Argumento Adaptado -, aqui o texto ficou a cargo de terceira pessoa: Bob Nelson, um argumentista televisivo de pequena monta que, às portas dos 60 anos, escreveu a primeira longa-metragem da carreira. Os Spirit Awards galardoaram-no com o prémio de Estreante do Ano e, de facto, não podia ser mais merecido. Como desfio no parágrafo inaugural, o texto de Nelson é de uma riqueza apaixonante, sendo delicado, inspirador e emotivo no seu trejeito de cara fechada. Um dos Argumentos do ano, como bem reconheceu a Academia.

Interpretativamente, também ficou tudo em óptimas mãos. Bruce Dern é imenso no retrato da velhice crua, que nos tira tudo e nos parece empurrar sem rede para um final inevitável. Carrega o filme no seu jeito seco, todo ele trémulo, desajeitado e ácido, mas capaz de emprestar aos olhos o brilho dos sonhos impossíveis, qual D. Quixote atrás de gigantes, desconfiando que são só moinhos, mas que valem a pena mesmo assim, por fazerem-no correr e porque, no fim, a jornada é mesmo a única recompensa. E é supremo o desfecho em que todo o personagem se desfaz num sorriso juvenil averso à austeridade, tão vindo do âmago que nos toca como o de um velho conhecido. June Squibb é, por seu lado, outra estrela na companhia. Parece, à partida, limitada a determinado tipo de personagem, mas chancela-se como uma secundária de luxo, bestial no seu carácter corrosivo, maus modos e agilidade hostil, que a tornam irresistível cena sobre cena. Will Forte, o filho mais novo, parece, conquanto, algo bidimensional para o que poderia ter sido o papel, ainda que o seu tom pachorrento acabe por pontear plenamente o curso final.

Nebraska não é um filme para nos tirar o chão ou varrer-nos de surpresa, mas exala qualidade em todos os seus momentos. Pode condicionar quem tiver menos paciência, porque dá-se ao seu próprio tempo e acrescenta cenas por mera composição estética ou reforço de contexto, mas é uma história francamente bonita, que não deve deixar de ser vista e cujo fim, acredito, não dispensa um sorriso nos lábios.

7.5/10

Sem comentários: