sexta-feira, 2 de maio de 2014

Fazer a própria sorte

 
'- Esta época, o que é que mudou no Benfica e no Porto, já pensou nisso?
- Já... mas tenho uma opinião diferente da sua. Não faço um juízo de valor por esta época, faço-o pelos cinco anos em que estou no Benfica, e pelo que eram o FC Porto e o Benfica antes e pelo que são agora. Só por este ano, não'
Jesus, depois da meia-final da Taça da Liga

Jorge Jesus nunca foi um bem-amado. Provavelmente, nunca será, ou não fosse ele a exacta antítese do modelo consumeiro dos 'treinadores de que se gostam'. Jesus tem uma facilidade para ser intratável, vezes demais no limite da falta de educação. Não mede palavras nem gestos, tem pouco tacto e tem a capacidade comunicativa de uma rocha. Dá espalhafato, é agreste e nunca aparenta sangue frio. Este é, não custa lembrar, o mesmo ano da molhada com a polícia em Guimarães e do festival de horrores em White Hart Lane. Desconfio que, até neste preciso momento de euforia, não seriam assim tantos os benfiquistas a assinar-lhe um contrato vitalício. Foram inúmeras e recorrentes as ocasiões em que o quiseram ver pelas costas, em que fantasiaram com outros perfis, em que, até, desamoraram as suas conquistas. Acredito que a sinopse é suficiente para perceber que, se chegou a treinador de maior longevidade da liga, no maior clube português, Jesus não pode ser só um treinador razoável.

Quando comecei a ver futebol, o Benfica não era uma das três melhores equipas portuguesas. Ser eliminado de forma idiótica da Taça UEFA era só normal e uma boa venda era fazer meia dúzia de milhões com Tiago ou Manuel Fernandes. Houve anos que até sorriram pela certa - lembrem-se Camacho, a nível interno, e Koeman lá fora -, mas, até Jesus, o Benfica tinha ganho um campeonato em 17 temporadas. O seu legado fala por si em todo e cada um desses vectores. Os mais ásperos dirão que duas ligas em cinco anos é pouco. Que outras duas perdidas no último fôlego foram inadmissíveis. Que Jesus beneficiou de dinheiro, jogadores e estabilidade como nenhum outro nas duas décadas que o antecederam. E todos terão alguma razão... ainda que, se fizerem disso argumento, não tenham claramente a noção da realidade. A ingratidão e o irreconhecimento são dos piores defeitos na vida, como no futebol. Se há uma regra de ouro no jogo é que nada acontece por acaso. Podemos todos crer que, quem ganha, merece sempre. Questionar a folha de serviços de Jesus nestes cinco anos não seria só desonesto; seria estúpido. Goste-se ou não do estilo - e remeto para o primeiro parágrafo -, se há uma coisa jamais questionável nele é a sua espectacular competência. Como táctico, como criador de talentos e como aculturador de vitórias. Talvez Jesus seja um arruaceiro. Mas é um dos melhores arruaceiros da Europa.

As vitórias são necessariamente a medida do sucesso e o Benfica precisa das finais que faltam para poder regenerar-se da tragédia que ainda tomba na sua memória colectiva. Porém, acho justo dizer que, se acabasse agora, se acabasse assim, Jesus já teria ganho. Sou um profundo admirador da sua qualidade desde sempre e um defensor inquestionável do seu mérito. Na fim da época passada, contudo, achei honestamente que era impensável continuar. Que o futebol é parte treino, parte emoção, e que se Jesus só podia ser excelente em metade, então o Benfica estava condenado. Que o único desfecho lógico para os dois era partirem caminho e começarem de novo. Tê-lo-ia sacrificado quando, ao minuto 90 da segunda jornada, já perdera o campeonato, ou quando a Liga dos Campeões se tornou num enorme nada, às mãos de um perecível Olympiakos. Jesus, pelo contrário, fez o impossível. Depois de ir ao inferno, depois das perversões de um purgatório de saídas escusas e a ter de reinventar a equipa pela milionésima vez, o Benfica foi ao campeonato, vai às Taças com requintes maquiavélicos e repete uma final europeia, com direito a jornada épica.

Filipe Vieira é um dos indissociáveis de tudo, pela visão, pela coragem e pelo tipo de instinto dirigente que, de facto, pode marcar uma era. Todavia, o Benfica deve a época à assombrosa capacidade de um homem em particular e, de facto, a um trabalho cujo alcance excede em muito 2013/2014. O tal que faz sempre feio na fotografia, mas que nunca parou de melhorar tudo aquilo à sua volta, o tal que provou hoje, com chave de ouro, que a sua excepcionalidade técnica dobrou, em última instância, a própria fronteira emocional. Neste momento, o Benfica parece capaz de derrotar qualquer adversário, com quaisquer jogadores em campo, seja até com quantos for. Jesus tornou a equipa numa máquina tão competente, que a sorte e o azar passaram a ser-lhe indiferentes. O Benfica deve mais a Jesus do que Jesus deve ao Benfica.

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