terça-feira, 27 de maio de 2014

Questão de fé


'Ya me puedo morir tranquilo'
Ramos

Sérgio Ramos é um dos defesas mais sobrevalorizados de toda uma geração. Espectacularmente mediático, há meia década que não deve falhar 'equipas ideais' de coisa nenhuma. Vice-capitão e guardião espiritual do monstruoso Real, reclamou, desde a primeira hora, a vaga na profética era da selecção espanhola, sustentado no colosso físico e técnico que é. Todos quantos se perderam a ver futebol europeu aos anos a fio saberão, todavia, o que falta a Ramos. Escrevi, há um par de épocas, que "tivesse corpo ou pés ligeiramente piores e era um jogador de 3ª divisão." De facto, muito poucos poderão reclamar uma carreira comparável à do sevilhano com uma cognição tão má do que é o jogo. Ramos é dos defesas de elite mais irresponsáveis e menos fiáveis que já vi jogar, e esse julgamento mantém-se, mesmo após a sua melhor época de sempre: Ramos jamais pensa a jogar.

Ironicamente, lembrei-me disso depois daquele golo ao minuto 93 e, desta vez, tive de sorrir. Mesmo de uma forma estranha, acho que foi aí que lhe fiz finalmente jus. Quando falo do físico e do talento como sustentáculos da sua carreira, falto-lhe no essencial: o coração. Com todos os seus inúmeros e incorrigíveis defeitos, Sérgio Ramos tem o carisma dos únicos. Daquele punhado de caudillos capazes de ressuscitarem mortos, de contagiarem legiões inteiras com um único olhar. Ramos não pensa a jogar. Na Luz, porém, com um sonho do tamanho de uma nação a ruir à sua volta, nenhum outro podia ter marcado aquele golo. Não o melhor do mundo, não o mais caro, não o melhor em campo. Só um que reagisse antes de pensar. Um que lembrasse, no limite, que o futebol, como a vida, é mais emoção do que o resto. E que, se sentirmos o suficiente, provavelmente estamos certos. Com todos os seus perniciosos defeitos, não havia um único madridista em Lisboa que acreditasse mais naquele empate do que Sérgio Ramos.

O Madrid mereceu ganhar. Sobretudo porque, ao contrário dos últimos anos, a conquista não foi uma neurose. O Real ganhou porque percebeu que o fim não tinha de justificar os meios, que nada daquilo tinha de ser uma provação esquizofrénica, com facas nos dentes e vale-tudo. Ganhou com a temperança de um sábio e com a bola dos melhores. Modric e Di María, a médios-interiores, são duas das figuras do ano. Que bendito jorro de futebol nos deram, justamente celebrado para a posteridade na relva do último dia. Angelito, em casa, pareceu possuído pelo demónio. Inventado por Ancelotti, joga mais distante do que nunca da baliza, mas parece cada vez mais perto. Hoje alia solidariedade e disciplina à condição de último dos fantasistas, sacramentada em cada slalom de moldura com que deixava meio Atlético para trás. Modric, posto de uma forma simples, parece bom demais para ser verdade. Pensar que Mourinho o condenou a um ano de banco é tão doloroso como uma lobotomia a sangue frio. O croata é um Dumbledore em campo. Necessariamente mais sábio do que os outros, provavelmente mais capaz, encarrega-se de sacrificar qualquer notoriedade ao desígnio de guiá-los a todos ao seu destino, qual grande arquitecto do Universo. A maior de todas as vitórias de Ancelotti foi o back to basics. Foi confiar que, com os melhores e a querer jogar bem, está-se sempre mais perto. O futebol não tem de ser um drama, não tem de ser um sacrifício. O futebol é mais simples do que parece.

O Madrid mereceu ganhar, mas não há nada que este Atlético merecesse perder. Não pude honestamente torcer pela última vitória, porque era hora de uma lenda continuar a forjar a sua História, mas ter vibrado de coração no Camp Nou, há uma semana, será para sempre um privilégio. Como já escrevi, o Atlético foi a equipa que gostávamos de ser. Um grupo de homens tão infinitamente maior do que as suas circunstâncias, que perverteu o dinheiro, as expectativas e as probabilidades, para lembrar orgulhosamente que o futebol é só outra forma de democracia. Que se acreditarmos o suficiente, formos corajosos e trabalharmos juntos, então não há nada que nos possa roubar o sonho. Mesmo se, no fim, faltarem 140 segundos. Se a final fosse um filme, o meu acabava sempre um instante antes daquele pontapé de canto. Fim aberto, acreditem no que quiserem.

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