segunda-feira, 12 de maio de 2014

Porque é que o City mereceu ganhar


Ninguém gosta deles. Isso é tão factual como ninguém poder dizer, em consciência, que na Velha Albion existe um mau campeão. O Liverpool foi o vencedor do povo, sabemos todos. A esquadra vermelho-coração que nos fez sonhar, tão estupidamente romântica que poder não torcer por ela pareceu sempre uma barbaridade qualquer. Gerrard é o ídolo com quem tivemos a honra de escorregar juntos, o herói que nunca nos perdoaremos não ter visto celebrar ontem o seu maldito campeonato na relva santificada de Anfield. Nada disto pode, todavia, pôr em causa o que o City fez por merecer. O Golias de azul-celeste está condenado a ser muitas coisas más. No fim do dia, porém, nunca é o dinheiro que ganha os campeonatos. O City foi primeiro pelo talento, sim, pelas principescas condições, claro, mas, sempre mais do que isso, pela competência do trabalho. Pela compostura, pela experiência, pelo sangue frio e pela excelência patente em 89 pontos e 102 golos numa liga que não é dura, é olímpica. No fim, pela própria estatura emocional de um punhado de grandes senhores que merecem todo o nosso respeito, e que são provas vivas de que até as máquinas se movem a cascos de alma.


O grande vencedor é evidentemente Manuel Pellegrini. O melhor treinador que o sheikh Al Mansour recrutou na sua dinastia podia perfeitamente não ter sido suficiente, ou a liderança dos maiores não dissesse respeito a muito mais do que capacidade técnica. O City sempre pareceu, aliás, o lugar à medida de uma popstar como Eriksson ou de um egomaníaco como Mancini. O clube sofisticado para lá do jogo, onde, como à mulher de César, raramente basta ser, é preciso parecer. Pellegrini era tanto um humilde fazedor de indisputáveis milagres com os mais pequenos, como o homem que falhara espectacularmente em Madrid, nessa pele que tinha tão pouco a ver com ele. Quando chegou a hora, contudo, o City arriscou no método sobre o perfil. O título, esse, é definitivamente indissociável das características humanas do chileno, quase como se lhe brotasse das pontas dos dedos.

O clube gastou três dígitos de milhões em reforços e, na folha salarial mais onerosa da liga, nunca houve ruído. A gestão do onze foi tão boa como a gestão do balneário e, se olharmos para Pellegrini, é fácil perceber porquê, na autoridade elegante, na segurança de si, na eficiência. São essas as principais qualidades do campeão. Ninguém simpatiza com o City, ninguém tem tão monstruosas sensibilidades para gerir, ninguém esteve, sequer, tanto tempo atrás do prejuízo. O Arsenal, por exemplo, passou 128 dias na frente da liga. O Chelsea 64 e o Liverpool 59. Os baby blues limitaram-se a lá estar uma exígua semana e meia. Perderam em casa e fora para Mourinho, e em Anfield, no "tudo ou nada". Na Europa, saíram pelos fundos, como sempre. Mesmo assim, 'El Ingeniero' nunca fraquejou. Qual epicurista, averso aos tormentos do mundo, surfou imperturbável na espuma das borrascas alheias até entregar o bombardeiro ao porto seguro. A compostura de Manuel Pellegrini ganhou o campeonato.


Porque é sempre de soldados que se fazem as grandes conquistas, é incontornável destacar três. Vincent Kompany levantou a segunda liga em três anos e poucos saberão como ele o tanto que elas custaram. O capitão não é só o melhor central da liga e um dos dois melhores do mundo. É um líder cujo carácter mede o do próprio talento, uma referência cujo impacto nos colegas e no jogo é estupidificante, e ao lado da qual tenho a certeza que é um privilégio jogar todas as semanas. É possível que a melhor ideia que o City teve neste imenso empreendimento em que se lançou há uma década tenha 1.93m e fale flamengo.


No coração do ataque onde se voltaram a derramar 50 milhões de euros em reforços, onde há anos e anos se andam a contratar os mais fortes do planeta, quem continua a resolver é o santo da casa. A fiabilidade de Edin Dzeko está no domínio das coisas que já não se fazem, num lote cuja forma, certamente, já se perdeu. Grosseiramente leal, jamais levantou um dedo às horas de sacrifício no banco, em benefício da constelação que vende camisolas, e são incontáveis as vezes em que, nessa insultuosa escassez de minutos, já os veio salvar a todos. Dzeko é um profissional por devoção, é o jogador que qualquer treinador devia matar para ter ao seu lado. Os bis frente ao Everton e ao Villa, que ganharam o campeonato, eternizá-lo-ão, se não agora, no lugar onde um craque merece.


Finalmente, um senhor para quem Homero podia bem ter escrito uma Ilíada. Tê-lo visto em campo este ano foi um privilégio de tal monta, uma experiência tão genuinamente impressionante, que muito pouco sobrou para escrever. Yaya é a força da natureza, o gladiador com a pujança de mil homens, o colosso capaz de ressuscitar e arrastar uma equipa às costas, o que não é necessariamente uma metáfora. Que época, por deus. Dizer que foi o melhor médio do mundo no ano da graça de 2014 é só um eufemismo.

O City foi um bom campeão e um grandíssimo adversário, e é por isso que isto vale tanto a pena. Agora acabou, o que dói de cada vez, o que merece toda a gravidade sempre. Valha-nos o Mundial para luto até ao retorno da única verdadeira igreja futebolística.

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