quarta-feira, 28 de maio de 2014

A moral dos homens

 
'Se treinas com Zanetti todos os dias e não aprendes nada, não sou eu que posso ajudar'
Mourinho sobre Balotelli

Houve um tempo em que o futebol vestia fato e gravata. Onde o sucesso se media em décadas, não em temporadas, e em que havia tempo para fazer heróis. Todas as casas tinham os seus, porque não se mudava de clube como quem muda de camisola, e por isso os estádios estavam sempre cheios, porque se sabia realmente quem estávamos a apoiar. Os treinadores adversários bebiam vinho na antecâmara e os valores mais importantes em campo eram a lealdade, a excelência e o exemplo. Houve um tempo em que o futebol era um jogo de cavalheiros. Podem duvidar, mas eu tenho provas. Pelo menos tinha, até à semana passada.

O Calcio é a grande liga que eu nunca vi. A melhor do mundo, mas só nos anos que me antecederam. No meu imaginário, a Serie A foi quase sempre uma nuvem pouco recomendável de futebol ultrapassado pelo tempo, um depósito decadente de equipas esquecidas, de ídolos em fim de carreira, de estádios decrépitos e de ultras pirómanos que tornavam tudo pior. O carácter de monstro adormecido só se insinuou aqui e ali, a canalizar o veneno imortal que sempre celebrara o futebol pátrio, nas Juventus de Lippi e Capello e, evidentemente, no maior de todos: o Milan europeu de Ancelotti. Ao Inter, por seu lado, sobrava ser o parente pobre dos grandes. Aquele perdedor crónico que ninguém consegue levar muito a sério. Um sorvedouro da fortuna Moratti em negócios dúbios, um quadro daliano com requintes perversos de via sacra. Mancini foi tricampeão, sim, mas nos anos em que os rivais foram saqueados pela corrupção. Teve, por isso, o crédito dos títulos de papel. Não é difícil sugerir, portanto, que encontrar uma só referência neste caos devoluto parece risível.

No entanto, qualquer um que tenha pronunciado o seu nome neste final de época não conseguiu tirar um semblante respeitoso da cara, ou deixar de falar dele com a veneração reservada àquelas grandes personagens de quem nos contam histórias, e perante as quais só podemos reafirmar a classe ou o carácter, com aquele olhar ilusionado que guardamos para coisas que são muito maiores do que nós. Zanetti é um jogador dos livros de História que vimos em campo. Um guardião tão intrínseco de uma altivez competitiva que, hoje em dia, parece inventado. Zanetti não jogava feio, não batia, nunca traía. Não sujava os calções, não se despenteava, jamais se cansava. Não gritava, não abusava da autoridade, tão pouco desiludia. Isso e dificilmente alguém que tenha jogado ao seu lado pode gabar-se de ter rendido mais. Perguntaram-lhe, por estes dias, se nunca se zangava. Ele respondeu que muito mais do que podíamos imaginar, mas que é sobretudo aí que é preciso saber tratar as pessoas. Quem acha que o futebol não ensina nada sobre a vida, não sabe nada sobre a vida.

Il Capitano foi o argentino mais internacional de sempre e o único a superar a barreira dos mil jogos oficiais. Foi o interista com mais minutos da História, o segundo da Serie A e o quarto de todos os tempos. Mas estar lá todos podem. Zanetti não foi só um profissional especial, foi um titular até ao fim. Aos 36 anos, quando o jogo finalmente fez a justiça de celebrá-lo campeão europeu, ele aceitou-o na condição de melhor defesa-lateral do continente, só porque, para ele, nunca podia ser menos digno do que isso. No ano passado, aos 39, rasgou o tendão de Aquiles, no que parecia um muito aventado fim de carreira. Em vez de se reformar, porém, entendeu que só sairia nos seus próprios termos. No regresso, ao fim de seis meses, entrou em campo, serpenteou por entre dois adversários e deu um golo. Para ele, nunca houve nada mais importante do que liderar pelo exemplo. Nem o tempo.

O mito é tanto mais radical se pensarmos que, de todos os sítios, foi-o no Inter. Não têm preço todos quantos devotam uma carreira a uma casa, mas há lugares onde é mais fácil. Durante 20 anos, contudo, Zanetti aparentou a idade e o alcance exibicional do primeiro dia, pela mesma devoção de quem acorda todos os dias apaixonado. Acho que foi esse o segredo daquele sorriso indistinto e da eterna juventude: um amor como nos filmes, mas a um escudo nerazurri. Mesmo nas piores noites, o Inter tinha Zanetti, e se tens Zanetti, vale a pena continuar, porque nem tudo está perdido. Não há nenhum rival que, do alto do que tinha, não tenha invejado o meio homem, meio lenda, a alma intemporal não de um clube, mas de uma era inteira.

Depois de Puyol e de Giggs, este é um ano triste para o ideário futebol. Camus escreveu uma vez que tudo o que aprendeu sobre a moral dos homens, aprendeu-o nos campos, jogando futebol. A minha geração teve o privilégio de aprender com eles.

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