Para mim, o Casino Royale não era só o melhor 007 jamais feito. A superação e o engrandecimento que emprestou à saga representaram um marco tão grande, que, como Dark Knight, no Batman de Nolan, tornava pouco crível que se pudesse vir a fazer maior do que aquilo. Quando o Skyfall acaba, no entanto, não precisamos de mais do que uns segundos para ter a certeza.
A realização de Sam Mendes é uma monumentalidade com todas as letras. É qualquer coisa de espectacularmente abusivo, uma arte com vida própria dentro do filme. Não me lembro de ter dado por mim tantas vezes maravilhado com a beleza da técnica. O realizador de American Beauty, que lhe valeu o Óscar (bisneto de madeirenses!), tem mais sequências de génio em Skyfall do que muitos realizadores na carreira inteira. O filme valeria a pena só por causa dele, mesmo que fosse um lixo no resto.
A luta num parapeito de um arranha-céus, feita de silhuetas num plano estático, de luzes ondulantes em fundo e da banda sonora de Thomas Newman (perfeita) é, possivelmente, a mais deslumbrante cena de acção que já vi. O permanente jogo com a escuridão - em cunha com o negrume do próprio argumento -, o Bardem cambaleante na noite entre chamas, o metro pelas galerias de Londres, o poder a filmar acção, a magnitude a filmar os lugares - da ilha deserta de Bardem aos majestáticos campos escoceses -, enfim, Sam Mendes escreveu uma poema com uma câmara nas mãos. Se a Academia o desterrar, como fez criminosamente com Nolan, descredibiliza-se até onde isso for possível.
O argumento é dos menos conspiratórios que a saga já teve e, ao mesmo tempo, dos mais felizes. Skyfall não é uma história de luta pelo domínio global ou de criminalidade caótica. É uma história pessoal, um ajuste de contas, um mergulho de cabeça no passado, que fala de confiança, de medo, de vingança e de expiação, e dos fantasmas que assombram cada um de nós. É a história mais humana de sempre, do Bond que volta à amargura da infância, da M para quem não há fuga das decisões que teve de tomar, e do impagável laço fraternal entre os dois, concretizando, de forma plena, a reinvenção do Bond impessoal, concebida em Casino Royale.
Na comemoração do meio século de filmes 007 (1962-2012), ainda houve tempo para ser revivalista, e ressuscitar, em homenagem, uns quantos símbolos que fizeram a saga. A Neal Purvis e Robert Wade, que asseguram o texto há 13 anos, desde The World is not Enough, juntou-se, desta vez, o colossal John Logan (Gladiador, Último Samurai, Aviador!), e, não sabendo mesurar o contributo, para um leigo, o peso pareceu imenso.
Bardem é o melhor vilão de sempre. Assim, fácil. Era coisa que o trailer já fazia adivinhar. Com a performance em No Country for Old Men ainda na cabeça, dar-lhe esta insanidade era pouco menos do que uma escolha perfeita. É impressionante a forma como o espanhol projecta no olhar, no esgar e nos gestos a loucura que se queria, a maneira como todo o seu corpo responde ao papel, possuído e febril, como se tivesse, realmente, uma sede quase física de vingança. Necessariamente para atacar o segundo Óscar da carreira, sem dúvidas.
Sagas não costumam ser muito gratas ao protagonista, mas Daniel Craig continua a merecer que se enalteça a encarnação brilhante de um papel que fez tão seu. Tão pessoal, tantas vezes em fiapos, mas sempre comprometido, e inevitavelmente intenso. A incomparável individualidade do seu Bond é um legado que ninguém lhe poderá tirar.
Skyfall é tão bom, que deu-se ao luxo de ter um fim como merecia. Pintado como um quadro, quase místico, reverente, duro e incontornável. Um fim à altura do melhor Bond de sempre.
9/10