Espanha 1-5 Holanda
Os alemães têm uma palavra chamada schadenfreude. De forma simples, alude ao prazer que se sente face à desgraça dos outros. De uma forma simples, é a razão porque não consigo deixar de escrever isto com um sorriso idiota na cara. Ao terceiro jogo, o Brasil 2014 escreveu a sua primeira página nos livros de História.
Não há nenhum ser humano que pudesse antecipar o que aconteceu hoje em Salvador da Bahia. A Holanda respeita-se sempre, claro que sim, e em campo estavam nada menos do que os finalistas do último campeonato do Mundo. Na realidade, porém, o que estava em campo era um mundo a separá-los. A Espanha não era só o vencedor vacante, era também a bicampeã da Europa. Era a esquadra que marcou uma Era, senhora de um banquete de recursos com que os outros apenas podem sonhar. Arriscaria a dizer, à partida, que o banco espanhol era favorito num jogo contra esta Holanda. A Laranja, por sua vez, depois dessa noite dramática na África do Sul, sumiu, muito mais do que somou. Não passou, por exemplo, da fase de grupos do último Europeu. Não viu emergirem talentos de maior, envelheceu as suas estrelas e ainda perdeu gente importante por lesão (Van der Wiel, Van der Vaart). Honestamente, ao vê-la entrar hoje em campo com uma equipa de miúdos, num sistema experimental, era difícil não olhá-la com toda a condescendência do planeta. Por estes dias, Van Gaal dissera, aliás, qualquer coisa como 'É a Espanha, temos de entrar com cinco defesas...'. És tão grande, meu cabrão.
Como em qualquer enorme armadilha, o primeiro passo é não dar nas vistas. Sneijder isolou-se cedo para servir a Casillas uma glória efémera, mas por meados da primeira-parte a Espanha já parecia andar aos laços no seu embrulho habitual. Mesmo num compasso abaixo do já pachorrento tiki-taka, mesmo com ar de quem acabou de acordar, parecia só um dia normal para os baixinhos de sempre, que lá iam descobrindo brechas entre as pernas alheias. Aí pela terceira vez, Diego Costa simula um penalty. Tudo como no guião, 1-0. Como em qualquer enorme armadilha, é impossível que os conspiradores não tenham duvidado de si próprios. Não foi tudo uma farsa cirúrgica, um espectáculo cronometrado para acontecer. Os nove humanos da equipa, fora aquela abençoada dupla da Terra do Nunca, tiveram de agonizar em silêncio, ser solidários, ajustar, lutar, ser ainda mais solidários. Mesmo sem nenhum ror de oportunidades do lado espanhol, houve fases em que não parecia crível que a Holanda pudesse emergir daquela teia. Isto até que Air Persie, Robbie Vantastic, fez aquilo.
Em cima do intervalo, o 1-1 foi mais do que perfeição em forma de jogada de futebol; foi Paulo de Carvalho a cantar o E Depois do Adeus no 25 de Abril, foi a senha para o ataque, o atestado para os miúdos, para o sistema experimental e para todas as dúvidas existenciais de que a Revolução das Túlipas estava na rua, pois que começasse a carga. A segunda-parte é um sonho. É uma Bíblia futebolística para ser emoldurada, vista para sempre e guardada junto aos livros de Cruyff e Van Basten, na igreja da Laranja Mecânica. Num ápice, a Holanda tinha superioridade atrás, era mais dura ao meio e era pornografia na frente. Agressividade, reacção e transições ofensivas tão abusadoramente boas que, neste momento, ainda se confundem com uma alucinação qualquer. Imaginem para a Espanha. A Roja parecia um náufrago que acordou a afogar-se, preso num pesadelo de carne e osso de que não podia acordar. A visão do inferno transformou-se em ataque de pânico, a defesa foi indizível e os cinco podiam-se bem ter transformado em sete ou oito. Em suma, o horrificante Campeão do Mundo, que começou a ganhar com um penalty roubado, acabou humilhado pela equipa de miúdos, com um sistema experimental, modesta herdeira da que há quatro anos perecera na final. Se o futebol não é magia, não sei o que seja.
HOLANDA - Em tamanha galeria, é de mau tom ter de escolher o melhor pintor, mas raios me partam, Robbie. O 1-0 é a monstruosidade dos predestinados e será o momento crucial de tudo o que a Holanda fizer daqui para a frente. De resto, deviam expulsar aquela barra da prova, só por ter-lhe roubado o hattrick. Depois, evidentemente Arjen Robben. A equipa confiava muito em ambos e dependia deles ainda mais. Os bailados dentro de área dignos do Bolshoi foram a humilde oferta do outro rei mago. Para revelação, Daley Blind. O versátil e raçudo ala-esquerdo é uma das chaves mestras do 3-5-2 de Van Gaal e as duas assistências de luxo tornam-no quase redundante. Foi o melhor dos mortais. Destacar ainda Martins Indi, o central mais imponente, e o temível De Jong, sempre com a faca nos dentes, vital em cada centímetro do seu meio-campo.
ESPANHA - Impossível relevar seja o que for. De todos, certamente um dos piores jogos da carreira de Casillas - depois da final homónima, em 2010, ter sido o contrário -, cuja titularidade, à vista da própria época no Real, passa a ser um caso realmente sensível. Mas também Piqué foi ridículo, numa defesa toda ela má de mais para ser verdade.
1 comentário:
Fantástico texto, um relato poético de um jogo épico!
fica aqui minha admiração parabéns.
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