sexta-feira, 20 de junho de 2014

Copa, dia 8: 'de qué planeta viniste...'


'...para dejar en el camino a tanto inglés?'
 
Uruguai 2-1 Inglaterra

Espero que já toda a gente tenha ouvido esta frase pelo menos uma vez na vida. Foi dita há 28 anos por um senhor chamado Victor Hugo Morales. O calendário marcava 22 de Junho de 1986 e a maioria saberá que ela emoldura a ouro o golo do Século, ainda que os mais religiosos tenham de explicar que se trata de algo mais: o que ela descreve é a descida de Deus à Terra. Hoje, em São Paulo, o que aconteceu não é evidentemente comparável a essa tarde mística na relva do Azteca, como não é nenhuma obra humana que tenha acontecido antes ou depois. Mas que melhor sítio para lembrá-la se não um Campeonato do Mundo, no dia em que um sul-americano louco e genial voltou a arrancar o coração inglês com as próprias mãos?

O Mundial tem sido verdadeiramente espantoso. Não há um único dia que não tenha oferecido um jogo bestial, seja qual for o domínio em que o jogo é bestial: talento, estratégia, carácter, sorte, emoção. Pela mera amostra desta primeira semana, o Brasil 2014 deixará uma conta de jogos memoráveis que não sei se tão cedo se poderá pagar. No entanto, ao 8º dia, digo, com a formalidade necessária, que nenhum bateu o Uruguai-Inglaterra. Que não foi o mais chocante, nem o mais exuberante, mas cujo alcance mental não tem simplesmente comparação. A atmosfera do jogo foi tão grandiosa como uma batalha. Dois campeões do mundo frente a frente, ambos acossados, ambos forçados ao limite para salvarem a própria vida. O medo respirava-se no ar, a tensão sentia-se na cara e a electricidade insuportável tornava todos os lances decisivos em algo muito mais dramático do que isso. Um jogo, por ironia, menos imprevisível do que parece. É que, no íntimo, sabemos sempre se estamos ou não à altura. Com idiossincrasias tão díspares como as de um Uruguai-Inglaterra, porém, também podíamos desconfiar.

Conta a lenda que, antes da final de '50, que o Uruguai jogaria no Brasil, frente à equipa da casa e a 200 mil canarinhos, o capitão charrúa, Obdulio Varela, dirigiu-se aos companheiros e, numa frase, sintetizou o ADN de um país: 'só há uma forma de ganhar, é termos os colhões na ponta das botas'. O Uruguai é isto. A Inglaterra, sabemos bem, é outra coisa. É a derrota com menos de romântico e mais de perdedor. É a equipa que, em trezentos desempates por penalidades, perdeu todos, a equipa dos Três Leões, se eles forem o abismo, o azar e as vitórias morais. Ainda assim, chegavam ambos a este jogo com estados de espírito diferentes, apesar das derrotas iguais: o Uruguai estreara-se humilhado, a Inglaterra, claro, caíra de pé. Honra lhes seja feita, começou como sempre, com os ingleses a liderarem a carga, numa projecção heróica muito própria. E lideraram-na sempre, na ilusão da madrugada do jogo, depois do primeiro golpe e quando o tempo já fugia por entre os dedos. Rooney já falhara golos de todas as maneiras, quando, para extâse geral, marcou finalmente o primeiro da carreira em Mundiais. A Inglaterra voltava ao jogo, a Inglaterra ia virar a sorte. Seria possível? Não, era só um prenúncio de morte. A tragédia seria, afinal, ainda mais cruel.

Qualquer vitória uruguaia é uma vitória do carácter. Daquele que os faz ganhar o último metro, roubar o último segundo, transcender as suas circunstâncias e fazer o próprio destino. Poucos terão acreditado que a redenção ainda fosse possível, depois da hecatombe inicial, com a estrela amarrada ao banco e a uma lesão, e perante um adversário vaidoso, jovem, sofisticado. A verdade é que não podia haver melhor cenário. O caos é o prato celeste favorito e o limbo o seu melhor restaurante. Qualquer vitória uruguaia é uma vitória do carácter. Quando o seu depositário é um predestinado, então mais vale pagar bilhete e deslumbrar-se com o espectáculo. Luís Suárez teve um pé fora do Campeonato do Mundo, depois de uma época que o podia levar a disputar a Bola de Ouro. Era impossível ter a certeza em que condição surgiria hoje, logo com a equipa num estado cumular de desespero. A sua exibição, bigger than life, será lembrada para sempre. Ali, semi-lesionado e sem segundas chances, no contexto e no palco mais radicais de todos, Suárez foi o melhor ponta-de-lança do universo que conhecemos. Inspirou os companheiros, liderou-os, tornou-os a todos melhores e fez o que mais nenhum podia fazer, numa demonstração inacreditável de génio, coragem e carácter. Poucos se podem alguma vez dar ao luxo de escrever tamanho capítulo sobre o que é estar à altura das expectativas.

Ao Uruguai ainda falta o pior adversário, à Inglaterra ainda sobra um milagre, mas acho que todos sabemos como é que isto vai acabar. Querem apostar?

URUGUAI - Cavani foi instrumental em ambos os golos. Saiu da orfandade e está reeditada uma das duplas idílicas da Copa. Arévalo foi determinante a ancorar o meio-campo e Lodeiro, a atacar por dentro, aproxima a equipa da sua matriz.

INGLATERRA - O milagre ainda é matemático e mais vale não subestimar o futebol, mas o Mundial foi demasiado ingrato, como sempre. A Inglaterra é das selecções com maior margem de progressão nos próximos anos, resta saber se também descobrirá um exorcista, até porque o talento nunca foi o problema. Rooney está condenado a ser o bode expiatório, mas ninguém tentou mais do que ele, ainda que as três perdidas sejam demasiado amargas. Johnson e Baines, nas laterais, foram os extremos que a equipa não teve. Sturridge, por fim, já é certamente um dos melhores #9 europeus.

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