terça-feira, 17 de junho de 2014

Os campeões que podemos ser


Perder foi a coisa mais importante que aprendi a viver futebol. Perder por pouco, perder sem merecer, pedir para perder ou perder espectacularmente. Não há nada que nos ensine mais do que uma derrota. Porque é exactamente nesse momento, quando nos põem tudo em causa e nos viram as costas, quando começam a alimentar a fogueira e temos de escolher entre ir ou ficar, que sabemos realmente o que somos. Acreditem que poucas coisas são mais puras do que ficar num estádio até ao fim só para bater palmas a quem acabou goleado. Porque isso é o derradeiro teste de fé. O que nem sempre nos dizem é que a próxima vitória começa no fim de cada um desses dias, assim a saibamos merecer. Nenhuma vitória tem a grandeza e a dignidade que se pode encontrar nas maiores derrotas. Porque ganhar é necessariamente eufórico. Só nas derrotas é que podemos provar que acreditamos nalguma coisa. Se queremos conhecer um homem, se queremos saber com quem contamos, é essa a hora de olhar para ele. A diferença entre ganhar e perder é que nas vitórias estão todos. Nas derrotas só estão os que interessam.

Ontem descobrimos que não vamos ser campeões do mundo. O Pai Natal, a Cegonha e o Batman devem estar iminentes. Não vamos ser campeões do mundo porque temos o pior treinador do mundo. O guarda-redes mais odiável, os defesas mais anormais, os médios mais acabados e os avançados mais inúteis. Até o nosso Bola de Ouro é o pior melhor jogador do mundo. Em boa verdade, descobrimos ontem só ter realmente três grandes jogadores: o Antunes, o Adrien e o Quaresma. Eles que teriam ganho o Mundial sozinhos, mas ficaram em casa. Ontem descobrimos que não vamos ser campeões do mundo. Até aí, para a doce pátria, era como se tivéssemos nascido no Penta; afinal somos o Madagáscar. Somos imprestáveis, estamos acabados e se calhar nem nunca fomos futebolistas. Ontem descobrimos que não vamos ser campeões do mundo. Ninguém nos preparou para isto.

As críticas tornam-nos melhores e a vida não espera por quem não sabe lidar com elas, é a verdade. A Selecção não é a Santa Sé e não só tem ser criticada, como é bom que o seja. O problema das críticas, como do mundo, é o quociente de idiotas. Os episódios de esquizofrenia colectiva, pela goleada de uma das duas únicas equipas que pode realmente ganhar isto, não são normais. São portugueses. Se eu sou epicurista nas derrotas? Não sou, morro por dentro. Se é admissível acatar a exibição nacional mais degradante de que nos podemos lembrar? O que é inadmissível é o frenesim febril que se alimentou a si próprio, o bota abaixo prosaicamente lusitano, o nosso fatalismo estúpido e tragicamente insuportável. É termos memória curta e tanto despeito para destilar, é sermos tão pequenos de espírito e toxicodependentes da culpa, é chocarmo-nos com pouco e desistirmos por menos do que isso. Se me perguntarem, as piores pessoas são sempre as que põem tudo em causa. Porque o fazem num ápice e porque nunca nos ajudarão a sair do buraco. Estão demasiado ocupadas a ter razão.

Ontem a Alemanha foi melhor e ganhou. Porque é muito melhor e porque ganharia quase sempre. Mas nem isso, nem o facto do árbitro ter sido um rato, pode mascarar, de facto, a desgraça que fomos. Sobre isso também teria muitas coisas a dizer. O funeral, todavia, outros já fizeram. Infelizmente, depois do jogo, só não ouvimos o que era preciso. Só não soubemos dizer que se perdemos, perdemos todos, mas que estaremos sempre, sempre lá. Hoje, o que me apetece dizer é que esta equipa é o 6-2 à Bósnia, depois deles prometerem que nos esfolavam vivos. Que é o golo do Varela à Dinamarca, quando já estávamos eliminados, e que é vulgarizarmos um vice-campeão do Mundo, depois de sermos decadentes. Que é prendermos a melhor selecção da História pelos penalties e é irmos ao primeiro mundo nórdico fazer o jogo internacional do ano e ganhar uma Bola de Ouro. Hoje, o que me apetece dizer é que esta é a equipa que nunca deixou de ser pior do que os outros e de fazer melhor do que eles, e que por isso, e só por isso, somos burgueses alucinados e mal habituados. O que me apetece dizer é que a Selecção de todos nós é uma falácia, porque o próximo mês não é de todos os portugueses. É dos que sabem que não pode haver orgulho sem sacrifício e dos que têm mais brio no escudo do que em qualquer resultado. Daqueles para quem sofrer não é um insulto, mas uma honra. Dos que, até ao último suspiro, com um aperto no coração e um brilho nos olhos, vão acreditar estupidamente que podemos, porque essa é a única maneira de o merecer. Os outros nem contam, nem nunca serviram para nada.

A vida não é futebol, mas o futebol é pessoal, tem de ser. Em ambos, ninguém precisa dos profetas da desgraça, dos fáceis, dos que não se comprometem. No futebol, como na vida, só os apaixonados é que valem, os inteiros, os incondicionais. O caminho foi sempre a recompensa e, para agonia do Velho do Restelo, o nosso não acaba aqui. No fim do dia, não é àquelas 23 almas que devemos alguma coisa. É a nós próprios. Talvez não possamos ser campeões, mas podemos viver e perder como uns.

1 comentário:

Anónimo disse...

Excelente texto, 99% dos portugueses precisava de o ler, importante nao so para o futebol mas tambem para a vida!
Vou guarda-lo como referencia.
Cumprimentos
DMS