sexta-feira, 18 de junho de 2010

O país em que é preciso morrer primeiro

"Portugal é o único país do mundo em que toda a gente escreve bem. Aqui, toda a gente já foi elogiada e toda a gente tem consciência do seu talento, apesar da proverbial injustiça disso nunca ser reconhecido a sério. A escrever, e em quase tudo o resto. É que somos, também, o país das vitórias morais, o país em que estar quase é que é poético, o país onde quem ganha sem ser a brincar, obviamente não o mereceu. Somos o país que não honra as pessoas verdadeiramente boas, porque essas matam-nos de inveja. Um país que, valha a verdade, não as merece. Não me admira, portanto, que seja tão fácil não gostar de Saramago. Saramago é o único Nobel num país de escritores, num país em que era suposto eles nascerem nas árvores, e qualquer bom português vê que isso não está certo. Além de que até é ele quem se põe a jeito. É que, além de ter essa coisa enervante no currículo, ele ainda se dá ao luxo de nunca ter tido formação superior, num país de doutores, e, ainda por cima, de ser um ateu convicto, num país de gente mais papista que o Papa. Um país que nem hesitou em meter obras suas na gaveta só porque atentavam contra os bons costumes e contra a religião da Nação, e que o viu, por isso, partir para a vizinha Espanha, de bom grado. Algo que, só para nos provocar, teve de acontecer antes dele ganhar o Nobel. Como para nos provocar, voltou ele, agora, a chamar nomes ao deus da religião da Nação, só para nos lembrarmos que ele é um vencedor-ateu-sem-formação, num país de derrotados-mas-talentosíssimos-católicos-intelectuais (mesmo que ele nunca puxe nada disso para a conversa). Alguém assim não tem nada a ver com este país. Daí que um eurodeputado do PSD, por certo doutorado, além de religioso, que nunca vai, contudo, ser mais do que um eurodeputado do PSD, sem nome, nem mais nada pelo qual o país o relembre, resolveu materializar o que estava na cabeça de todo o bom português: pois que Saramago renuncie à nacionalidade! Simples. Isto porque “o Nobel o deslumbrou” e porque o Nobel “não lhe confere autoridade” para atacar “os valores que definem as pessoas de bom carácter”. Se nos irrita, para quê esconder? Talvez o mui nobre Portugal até pudesse perdoar ao pobre Saramago iletrado e ateu, pelas maluquices que anda por aí a dizer. Nunca perdoará, por certo, ao impertinente vencedor de um Nobel."


Escrevi isto há uns meses, para a Faculdade. De Saramago não posso dizer que tenha consumido muito da sua obra mas, entre o Memorial e o Ensaio sobre a Cegueira, é difícil não reconhecer uma coisa: polémicas e ideologias à parte, Saramago foi um génio e um filósofo, um talento ímpar do qual o país se deveria orgulhar incondicionalmente. O seu Nobel, no entanto, como disse Mourinho há tempos, não será de todos os portugueses. Será, só, daqueles que o admiraram. É nessa qualidade que, hoje, me curvo perante a sua memória.

Morreu José Saramago, um dos maiores de sempre.

2 comentários:

Anónimo disse...

Muitos parabéns! Tens uma escrita intensa, bela e de uma mordacidade implacável . Genial a tua crónica! Amei!
Gilda

Aline disse...

Found it, loser! :D